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O dinheiro na mão das mulheres

Cadastrá-las como donas da conta serviu para tirar muitas delas de uma vida precária e lhes dar uma liberdade inédita

Por Angela Lacerda /Recife
Atualização:

Foi em 2000 que o governador Mário Covas aprovou, em São Paulo, uma decisão importante para as mulheres: elas passariam a receber em seu nome a propriedade e as chaves dos imóveis do programa habitacional paulista. Mais tarde, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou medida de âmbito nacional, na mesma direção: as mulheres é que teriam a titularidade dos cadastros do Bolsa Família.

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Foram avanços importantes, mas uma estudiosa da condição feminina no Brasil acha que é pouco. “Só o repasse de dinheiro do Bolsa Família não é suficiente para promover a autonomia das mulheres ou reduzir as desigualdades de gênero”, afirma a antropóloga pernambucana Giselle Nanes. “Ser titular de um benefício ainda não garante a autonomia”, adverte a professora. Mas ela reconhece que o ganho obtido pelas mulheres, tornando-se titulares do benefício, “representa uma conquista das lutas feministas”.

Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Família e Gênero da Universidade Federal de Pernambuco, ela ressalta que “o fato de contar com uma renda mensal advinda da titularidade (do Bolsa Família ou de outro programa) é um elemento importante para as beneficiárias começarem a sonhar com uma vida melhor, ter um emprego formal e uma casa”. Esse emprego formal e a casa muitas vezes simbolizam, sustenta a antropóloga, “a saída de situações de violência com ex-companheiros e a possibilidade de maior independência em novos relacionamentos familiares”.

Autonomia. Para ajudar a alcançar estes resultados - autonomia feminina e redução das desigualdades de gênero - Nanes avalia que as políticas de transferência de renda precisam pôr em prática outras iniciativas que ajudem a criar melhores condições de acesso, permanência e participação das mulheres pobres no mercado de trabalho. Ela ouviu 120 mulheres, numa pesquisa de campo de dois anos entre 2012 e 2013 e defende que “o programa deveria ter uma integração com outras políticas públicas nas áreas de saúde reprodutiva e qualificação profissional, por exemplo”.

Nesse esforço, ela se deu conta de uma realidade mais ampla: é que mesmo que os valores recebidos sejam modestos, o auxílio do Bolsa Família “repercute na organização do seu cotidiano e na relação com companheiros e filhos”. Assim, em uma situação de necessidade e miséria, o dinheiro do Bolsa Família pode representar muito. Em sua grande maioria, as mulheres pesquisadas falavam de melhorias da “vida de antes” e na possibilidade de comprar itens como alimentação, vestuário e utensílios domésticos, sempre com prioridade para os filhos.

A tese de doutorado da antropóloga Nanes é exatamente sobre o tema: “Gênero, Desenvolvimento e Programa Bolsa Família: Direitos Reprodutivos, Trabalho e Projetos de Vida”, No estudo, ela descarta a ideia do “efeito preguiça”, muitas vezes mencionado pelos críticos do programa. “A inserção no Bolsa Família não acomoda as mulheres na busca por emprego”, assegura. Ao contrário, o que lhe chama a atenção é o conjunto de circunstâncias desafiadoras que elas enfrentam. “O que observamos é que as trajetórias das mulheres pobres são marcadas por ocupações no setor informal, com remuneração irregular e precária, além de dificuldades de conciliação com o trabalho doméstico e cuidado dos filhos”.

Orgulho. As avaliações da antropóloga combinam com a experiência pessoal de mulheres pobres que vivem no Recife - como Patrícia Pereira, 34 anos. Analfabeta, mãe de seis filhos, ela recebe o Bolsa Família há dez anos e seu filho mais velho, de 18, está preso por roubo - vai ficar na cadeia mais três anos.

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“Não me sinto mais tão por baixo”, diz ela, satisfeita por chegar em seu nome o dinheiro do benefício. O marido, desempregado e recebendo auxílio da Previdência devido a um problema de saúde, reclamava antes por arcar sozinho com a casa. Quando ela incorporou ao orçamento mais R$ 191 por mês, passou a ser mais respeitada. “Mudou bastante a minha vida. É um dinheiro certo, eu posso colaborar”. Os gastos com os filhos são prioridade, mas há dois anos ela conseguiu comprar uma televisão tela plana em 12 prestações de R$ 80. Os esforços que fez antes para melhorar sua situação, segundo afirmou ao Estado, esbarraram em dificuldades: ela cursou até a segunda série do fundamental e apenas desenha o nome. Disse ter tentado aprender depois de adulta, mas chegava muito cansada à aula e dormia. “Desisti”, admitiu Patrícia ao final da história, na fila de um posto de saúde em um bairro do Recife. Ela pensa também em arranjar um trabalho - mesmo que informal - mas depende antes de fazer uma cirurgia.

Passar a receber o Bolsa Família, há cerca de quatro anos - hoje, o valor é de R$ 170 -, representou uma grande mudança na vida de J. S (ela pede para não se identificar por ter sofrido violência familiar ainda aos 13 anos - hoje está com 26 anos).

Na ocasião, ficou grávida e teve uma filha. Há seis anos encontrou um companheiro, com quem teve mais duas filhas. Ele a sustentava, mas tinha ataques de ciúme doentio, a ponto de impedi-la de sair de casa sem ele. Por causa disso, foi obrigada a desistir de um “bico” que fazia numa barraca de frutas no bairro onde vive, na periferia da capital pernambucana.

‘Presa’. “Não era vida”, resumiu ela, “eu me sentia presa, de domingo a domingo”. Mas a situação mudou quando começou a receber o benefício, logo após o nascimento de sua segunda filha. Há um ano e meio, separou-se do marido e a titularidade do benefício lhe permitiu alugar um barraco perto da casa de sua mãe, por R$ 60.

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A rotina dela, numa área pobre da periferia do Recife, continua difícil: o ex-companheiro não dá nenhum tipo de ajuda, e o mesmo faz o pai de sua filha mais velha. Seu sonho é qualificar-se em alguma atividade e buscar um emprego formal. Foi obrigada a abandonar um curso de cabeleireiro por não ter com quem deixar as crianças - não há vagas na creche da área onde mora.

“Ainda vou me qualificar e melhorar a vida das meninas”, assegura, certa de que, não dependendo mais de um companheiro para pagar o aluguel, poderá ter mais tempo e liberdade quando as crianças estiverem na escola. “Eu pago pelo meu barraco”, afirma ela - numa confirmação prática das teses defendidas pela antropóloga Giselle Nanes.

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