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Modelo brasileiro para financiar campanhas fortalece ‘caciques’ e afasta eleitor dos partidos

Aprovação dos fundos públicos garantiu às siglas em 2022 o maior montante da história, são R$ 4,9 bilhões para campanhas e R$ 1,06 bilhão para o Fundo Partidário

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Por Gustavo Côrtes
Atualização:

Os R$ 5,96 bilhões previstos para o financiamento de campanhas políticas e o custeio das agremiações neste ano eleitoral equivalem a 46,5% de todos os recursos do Tesouro destinados aos partidos na última década, de acordo com levantamento realizado pelo Estadão com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado em dezembro, na votação do projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA), o valor representa um aumento real de 92,5% em relação ao pleito de 2018.

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Segundo analistas ouvidos pela reportagem, na maior parte das democracias o Estado arca com pelo menos uma parte do custeio das candidaturas. No modelo de financiamento em vigor no Brasil, no entanto, eles alertam para riscos como o fortalecimento do domínio de “caciques” sobre as máquinas partidárias, a falta de transparência nas prestações de contas das legendas e a desconexão entre eleitores e seus representantes.

Criado em outubro de 2017 pelo Legislativo, o fundo eleitoral foi considerado uma resposta do sistema político à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, dois anos antes, proibiu a doação de empresas para campanhas. Para ministros da Corte, a influência do poder econômico causava distorções e comprometia a “normalidade e a legitimidade das eleições”. Havia, ainda, a percepção de que o financiamento empresarial permitia o uso de doações para mascarar o pagamento de propina via caixa 2 – prática exposta na época pela Operação Lava Jato.

Campanha política nas eleições de 2014; fundo eleitoral foi criado pelo Congresso em 2017 após STF vetar financiamento empresarial. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

‘Distanciamento’

Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) mostra que o custo médio das campanhas caiu 38% de 2014 para 2018. Uma das autoras do estudo, a cientista política Lara Mesquita acredita que, embora necessária, a mudança pressionou as contas públicas e desincentivou partidos a buscar apoio orgânico na população. “Para os políticos, foi um alívio se isolar das empresas, porque isso os blindou das denúncias de corrupção. Mas há dois ônus: o peso disso no Orçamento e o distanciamento entre a sociedade e os partidos políticos, que têm seu financiamento garantido”, afirmou a pesquisadora.

Entre 2011 e 2021, os fundos eleitoral e partidário renderam R$ 12,9 bilhões às siglas. O crescimento das verbas públicas para as campanhas tem desgastado a imagem dos partidos, em meio ao quadro de deterioração fiscal do País. “Esses valores são estipulados sem nenhum critério objetivo. Não se discute quanto se pode gastar em uma campanha, nem há fiscalização rigorosa sobre o que é gasto. O aumento que vimos agora não se justificaria nem se o País estivesse no azul”, disse o cientista político Jairo Nicolau, da FGV-RJ.

Em julho do ano passado, o Congresso chegou a estabelecer um fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), uma prévia da LOA. O Livres, organização suprapartidária com representantes eleitos por 12 legendas diferentes, entrou com mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal contra a proposta.

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“No mundo ideal, os partidos deveriam ser capazes de se sustentar apenas com recursos doados voluntariamente. Não é aceitável praticamente triplicar o valor do fundo eleitoral se a população, que é quem paga a conta, não está três vezes mais rica. Pelo contrário, ficou mais pobre”, afirmou o diretor executivo do Livres, Magno Karl.

Veto derrubado

O presidente Jair Bolsonaro resistiu a vetar o trecho da proposta referente à quantia. Na ocasião, afirmou que incorreria em crime de responsabilidade caso não autorizasse pelo menos R$ 4 bilhões, embora não exista nenhuma lei que o obrigue a autorizar tal valor.

Após pressão da opinião pública e de sua base, ele vetou parcialmente a LDO e reduziu em R$ 1,7 bilhão o montante definido anteriormente pelo Legislativo. O governo, no entanto, não se empenhou para garantir a manutenção do veto, derrubado pelo Congresso em 17 de dezembro com apoio de grupos de diferentes colorações partidárias. No Orçamento, aprovado dias depois, o Congresso recuou e designou os R$ 4,9 bilhões para o fundo eleitoral. Mesmo com a redução, o montante é quase duas vezes e meia superior aos R$ 2 bilhões destinados pelo “fundão” nas eleições de 2020.

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O PL, partido ao qual Bolsonaro se filiou para disputar a reeleição neste ano, será o 8.º maior beneficiário dos fundos públicos, com R$ 340,9 milhões. O partido orientou sua bancada a favor da retomada dos R$ 5,7 bilhões, assim como Progressistas e Republicanos, siglas aliadas ao Palácio do Planalto que integram o Centrão. 

União de opostos

As divisões relativas ao tema dentro do Congresso são diferentes daquelas geralmente observadas. Em julho, por exemplo, na votação da LDO, o PSOL aderiu à iniciativa do Novo para tentar barrar os R$ 5,7 bilhões para o financiamento de campanhas. Questionado pelo Estadão, o presidente do PSOL, Juliano Medeiros, afirmou que o partido se posicionou contra o aumento do “fundão” por considerar que “os valores propostos inicialmente eram suficientes para financiar campanhas austeras”.

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Afinidades ideológicas à parte, o PT tem uma visão diferente da do PSOL e apoiou o maior montante de verba pública para campanhas, assim como o PL de Bolsonaro. O PT terá, entre fundo eleitoral e partidário, R$ 594,4 milhões. É a segunda maior fatia em 2022, atrás apenas do PSL (R$ 604,1 milhões). “O PT defende o financiamento público de forma a reduzir a influência do poder econômico no processo político-eleitoral. É muito mais democrático que as campanhas sejam financiadas de forma transparente pelo orçamento público”, disse a sigla por meio de nota. 

Influência

O predomínio do dinheiro público em detrimento do privado nas campanhas, porém, não afastou a influência do poder econômico nas eleiçõs, na avaliação de Lara Mesquita. Segundo as regras do TSE, cada cidadão pode contribuir com até 10% de seus rendimentos brutos declarados no ano anterior ao pleito. “CEOs de grandes conglomerados e pessoas do sistema financeiro conseguem financiar, sozinhos, vários candidatos, enquanto profissionais liberais ou assalariados não podem fazer frente a essas figuras.”

Pessoas físicas com patrimônio elevado também podem bancar a própria candidatura, como fez o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles em 2018, quando investiu R$ 54 milhões do próprio bolso em sua campanha à Presidência. Com apenas 1,2% dos votos válidos, o então candidato do MDB gastou R$ 42 por voto. 

Denúncias de irregularidades continuam frequentes. O PSL, partido pelo qual Bolsonaro se elegeu presidente em 2018, é alvo de investigação do TSE que apura um suposto esquema de “candidaturas laranja”. A sigla teria distribuído recursos públicos para candidatas “fake”, que nem fizeram campanha para os cargos que disputavam. 

Concentração

O caso suscita o debate sobre um aspecto sensível do financiamento público de campanhas: a concentração de poder nas mãos de dirigentes partidários, responsáveis por definir a divisão das verbas. “É um erro a lei não estabelecer que, digamos, 40% do dinheiro que os partidos atribuem aos candidatos ao Legislativo seja dividido de forma equânime. A maior parte vai para quem já tem mandato e para os puxadores de voto”, afirmou Jairo Nicolau. 

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O TSE exige dos partidos que pelo menos 30% das candidaturas sejam de mulheres e que este mesmo porcentual mínimo também seja aplicado na distribuição dos recursos para as candidatas. No caso das pessoas negras, a Corte determina que se direcionem as verbas proporcionalmente ao número de candidaturas. 

Lara Mesquita considera estes instrumentos insuficientes para a promoção de uma alocação mais justa dos recursos dentro das siglas. “Mesmo com a obrigação da distribuição proporcional para candidaturas de mulheres e negros, é possível dar todo o recurso a uma candidata mulher negra para presidente, por exemplo. Eu cumpro a legislação, mas concentro tudo em apenas uma candidatura.”

‘O eleitor precisa ver mais sentido nesse custo’

Também apontado pelos especialistas como um risco ao sistema político, o critério de distribuição dos recursos do fundo eleitoral entre as siglas deveria ter maior participação social. Pela legislação atual, 2% do valor é dividido igualmente entre os partidos e os 98% restantes, proporcionalmente ao porcentual de votos obtidos no pleito anterior e ao número de deputados e senadores eleitos. 

“O eleitor só participa da divisão do recurso com o voto dado quatro anos antes. Muita coisa muda nesse tempo, e a maior parte nem sequer sabe que seu voto determina quanto dinheiro os partidos receberão nas próximas eleições. Existem outras formas que dão um papel mais ativo à cidadania e fazem o eleitorado ver mais sentido nesse custo”, afirmou a pesquisadora da FGV Lara Mesquita.

Ela citou modelos alternativos de financiamento de campanhas adotados por outros países, como a complementação da doação de pessoas físicas com dinheiro público. “Em alguns lugares, como na Alemanha, o governo complementa as doações de pessoas físicas com um valor menor.” Já no Estado de Nova York, este complemento é maior para doações menores. “O objetivo é incentivar as doações de pequeno valor de um número maior de pessoas. Assim, os partidos precisam buscar a participação dos eleitores”, afirmou.

‘Desconfiança’

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Apesar das fragilidades do modelo atual de financiamento, o cientista político Jairo Nicolau vê avanços em relação ao anterior, no qual as campanhas tinham valores mais elevados e permitiam dinheiro de empresas.

“Imagine uma empresa que ganha, sem nenhum tipo de corrupção ou informação privilegiada, uma licitação no governo de um político que ela ajudou a eleger. Quem vai acreditar? (O financiamento empresarial) cria uma desconfiança permanente. A gente precisaria ter outro ambiente institucional, com comportamento diferente das empresas e da elite política.”

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