Leandro Karnal: 'O impulso do voto é passional, não há lógica'

Professor da Unicamp diz que urnas não são depósitos de razão, contenham elas votos para esquerda ou direita

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Por Renata Cafardo
Atualização:

O historiador e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Leandro Karnal explica o atual cenário eleitoral com o argumento de que não se escolhe candidatos no Brasil com racionalidade. “As urnas não são lógicas, elas não respondem com a lógica nem quando votam à esquerda, à direita ou ao centro”, diz. Para ele, “o impulso de voto é passional” e por isso há uma “relativização de valores”. Entre os exemplos, ele cita o cidadão que conseguiu o Bolsa Família ou o ProUni e, então, não reclama da corrupção no PT. Ou ainda a relativização “das afirmações misóginas e homofóbicas” de Jair Bolsonaro (PSL) porque o eleitor vê nele a solução para a segurança. 

Ilusão.Brasil constrói imagem de País pacífico, mas é polarizado na essência, diz Karnal. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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Karnal lembra que não é a primeira vez na história nacional com momentos de extrema polarização e agressividade. A novidade agora é a internet. “Todos consideram sua opinião tão válida quanto a do cientista político”. E vem daí, segundo ele, o fenômeno das fake news. “Hoje, o que nós dissolvemos não foi só o critério da verdade. As pessoas, inundadas por informações falsas de todos os lados, acreditam que tudo é subjetivo, tudo é uma questão de posição política e você acredita se quiser.” 

O historiador ainda comenta as brigas entre famílias e amigos por causa das eleições. Para ele, dores e medos são disfarçados com roupagem de patriotismo ou justiça social. “O que realmente estão discutindo duas pessoas que brigam para saber de que lado alguém está? Provavelmente não é política.”

Como o sr. analisa a polarização da sociedade por causa das eleições?

Temos uma tradição de polarização no Brasil. Tivemos uma divisão profunda de 1961 a 1964, até mais violenta, tocaram fogo no prédio da UNE, mataram um estudante. E revivemos essa polarização também na campanha entre Fernando Collor e Lula, em 1989. Mas o Brasil constrói para si a fantasia de país pacífico e harmônico. A novidade agora é a internet, em que todos podem se posicionar e consideram sua opinião tão válida quanto a do cientista político. Mas a polarização é muito maior na internet do que nas ruas. Tivemos manifestações contra e a favor de Bolsonaro e não houve atritos.

Mas houve o esfaqueamento de um candidato, há famílias e amigos brigando.

Um atentado mostra que nós temos um fato concreto, mas já houve outros na história do Brasil também. Na Intentona Integralista, de 1938, os inimigos de Vargas cercaram o palácio presidencial, atirando contra a família dele. Imagina o Temer isolado sendo agredido pelas pessoas? Sobre as famílias e amigos, é a vitória do nosso narcisismo e do empoderamento da opinião individual, estimulada pelas redes. Pior: disfarçamos dores sociais e medos com roupagens de patriotismo ou justiça social. Podemos perguntar: o que realmente estão discutindo duas pessoas que brigam para saber de que lado alguém está? Provavelmente não é política. 

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Como analisa o voto em Jair Bolsonaro e em Fernando Haddad, líderes nas pesquisas?

O voto não se baseia em argumentações racionais. O impulso de voto é passional, então tem a relativização de valores. Se eu obtive o ProUni ou Bolsa Família, relativizo a ética e atribuo ao PT essas melhorias, quase que dizendo que os outros também roubavam e nada fizeram por mim. Da mesma forma, há uma relativização de afirmações misóginas e homofóbicas de Bolsonaro porque veem nele a segurança. O discurso de restaurar a força dos homens “de bem” contra bandidos sempre tocou fundo nosso conservadorismo. O voto não é um ponderação de valores, mas uma passionalidade do indivíduo. Julgar as eleições a partir de uma equação é uma tentativa de analistas. As urnas não são lógicas, elas não respondem com a lógica nem quando votam à esquerda, à direita ou ao centro.

Como o sr. vê a proliferação das fake news nas eleições? 

Sempre existiu mentira política, havia panfletos difamatórios na Revolução Francesa e pichações em Pompeia. A novidade de hoje é a capilarização da informação, a atomização do acesso a ela. Há duas maneiras de você destruir a verdade, ou negando que a conheçam ou afogando as pessoas em excesso de informação. Hoje, o que nós dissolvemos não foi só o critério da verdade. As pessoas, inundadas por informações falsas de todos os lados, acreditam que tudo é subjetivo, tudo é uma questão de posição política e você acredita se quiser. Estamos confundindo opinião com argumento. Opinião é livre, o argumento precisa ser demonstrável com dados, possíveis de serem verificados. Esse é o nosso drama nas eleições, excesso de informações falsas, levando à dúvida sobre a validade de todos os fatos, o que favorece aqueles que têm algo a esconder. 

O sr. tem dito que o problema do Brasil é o eleitorado. 

Nenhuma dessas pessoas estará no poder por golpe de Estado, todas são eleitas por uma maioria legítima. Então temos que refletir. Eu até posso fazer um impeachment, mas que impeachment você provoca no eleitorado? Se eu tirar um candidato, o mesmo eleitorado dele continua. Nós precisamos de uma educação de médio e longo prazo para as pessoas votarem menos passionalmente e mais analisando propostas. 

Mas como fazer isso? 

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Isso não será visto pela minha geração. Mas nós temos experiências. A Coreia do Sul, em 1970, era um país idêntico ao Brasil nos indicadores socioeconômicos. Hoje é primeiro mundo e o Brasil continua patinando. É um opção histórica: investir na qualidade da educação. 

Nesse momento crescem movimentos como o Escola Sem Partido, que defendem que não haja discussão política nas escolas.

Temos que trabalhar com o contraditório e entender que quem pensa diferente não é meu inimigo. O grande drama atual é que muita gente está achando que o que pensa diferente tem que ser eliminado. 

Em vários países do mundo, a direita tem crescido, inclusive no Brasil. Por que? 

Os sistemas mundiais são cíclicos, sistêmicos e diabólicos. O que está em risco não é a oscilação de direita e esquerda. O problema atual é a descrença na democracia. Os dois candidatos mais bem colocados elogiam ou não criticam ditaduras. Um ama a do passado e outro, a de países vizinhos. 

Há risco para a democracia? 

Toda democracia está sempre em perigo. E como lembram muitos autores hoje, o colapso da democracia não é mais feito por um golpe ditatorial ou militar, mas pelas urnas. Todos os homens que se encaminharam para um governo autoritário foram eleitos. 

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Como acha que a sociedade vai estar depois das eleições? 

Futuro é área complexa para o historiador. Estudamos o que passou. Só tenho desejos: quero que o Brasil melhore e compreenda que a Guerra Fria terminou em 1989 e que o debate esquerda e direita mascara questões maiores. Quero um Brasil sem racismo, misoginia e homofobia, com melhor distribuição de renda e mais ético. Quero jovens nas escolas e que elas sejam boas. Tenho esperança nisso ou não levantaria dia após dia.