"Deslulização" a fogo lento

Em semanas, Lula perdeu dois ministros na Esplanada e um amigo no Senado por ação direta de Dilma Rousseff. Pode-se argumentar que a presidente não teve escolha, que as demissões de Antonio Palocci da Casa Civil e de Alfredo Nascimento dos Transportes eram inevitáveis pelas confusões em que ambos se meteram. E que o suplente João Pedro (PT) foi um dano colateral da volta de Nascimento ao Senado.

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Por Redação
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Mas é inegável que os substitutos no ministério têm muito mais a cara de Dilma do que a de Lula. Daí ter voltado à moda a expressão "deslulização" do governo. "Boutade" ou fato?

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Há muito de torcida -da imprensa, por notícia; da oposição, por intriga entre criador e criatura- na "deslulização". Uma resposta truncada da presidente em uma entrevista para uma rádio em Rondônia virou manchete: "Dilma levanta possibilidade de segundo mandato". Se foi de propósito, pior ocasião seria difícil de achar. Se foi ato falho, nem Freud poderia cravar. E apostar no erro humano nunca empobreceu ninguém.

Mas há mudanças de comportamento do Palácio do Planalto -este ente inanimado que os jornalistas gostamos de transformar em personagem para ocultar fontes (ou a ausência delas). Em vez de hostilizar a imprensa, algo comum na gestão Lula, emissários de Dilma passaram a alimentá-la. Um vazamento aqui, um recado ali, uma confirmação "off the record" acolá. É o tempero de fritar ministro.

Nada comparável ao festival gastronômico que foi o governo Sarney, por exemplo, quando a rotatividade ministerial era comparável à das mesas do McDonald's. Mas que o ministro Nascimento saiu dos Transportes chiando como toucinho na chapa, isso saiu. Sua imagem pública lembra o ditador do Iêmen, Ali Abullah Saleh, pós-bombardeio.

Tentadora, a fritura deve ser consumida com moderação. Pode saturar a base aliada com rapidez. Dilma parece apostar no efeito pedagógico do óleo fervente. Quem não se comportar direito ou, mais imprudente, desobedecer a chefe está sujeito à frigideira. É um jeito de lidar com a fome insaciável dos aliados do governo no Congresso muito diferente do que o apaziguador Lula costumava empregar.

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Que o diga o ministro Gilberto Carvalho, principal herança palaciana deixada pelo ex-presidente. O noticiário descreve o secretário-geral da Presidência como um bombeiro tentando baixar a chama das várias bocas do fogão industrial que Dilma e a ministra Gleisi Hoffmann (Casa Civil) andam acendendo.

Segundo relato da repórter Tânia Monteiro, no Estado, Carvalho irritou Dilma por transmutar em "férias" a demissão do diretor-geral do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte), Luiz Antônio Pagot, no auge da crise no Ministério dos Transportes. Acabou tendo que engolir a própria alquimia.

Cada um cozinha com os ingredientes que têm à mão, e o estilo de Dilma e suas "sous-chefs" é muito mais quente do que o de Lula. Mas fritar sem se queimar não é tão fácil quanto parece.

É o suficiente para falar em "deslulização"?

Não como sinônimo de rompimento iminente. Sim no sentido de Dilma encontrar caminho e equipe próprios, que funcionem (ou tentem funcionar) além da sombra de Lula. O distanciamento é o processo natural, até esperado, entre sucessor e sucedido.

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Só o titular da cadeira presidencial sabe o tamanho dos problemas, conhece todas as circunstâncias, tem a caneta para tomar as decisões e a responsabilidade de arcar com as consequências. É a tal solidão do poder. Quem palpita de fora, mesmo com oito anos de experiência, não precisa assumir o compromisso de seguir os próprios conselhos. No popular, falar é fácil, difícil é fazer.

Em contrapeso, Dilma está longe de fixar uma imagem própria e independente de Lula. Sua popularidade é inercial e hereditária. Os picos que galgou foram circunstanciais, empurrada, por exemplo, pelos elogios de Barack Obama. O caminho imediato à frente promete muitos solavancos econômicos. Nada que incentive um voo solo.

Se esse balanço vai evoluir para uma separação entre Dilma e Lula, como tantos exemplos históricos sugerem, não há como prever sem travestir-se de pitonisa. E o Carnaval ainda está longe.

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