Anomalias normais

Din-don! - Ó, Jarbas! Veja aí quem é. - É a Polícia Federal, doutor. - De novo?!

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Por Jose Roberto de Toledo
Atualização:

Para ex-ministros, visitas policiais viraram rotina matinal. Mas os poderosos estão longe de ser os únicos perturbados pelos efeitos da criminalidade que foram incorporados ao cotidiano.

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"Pai, pai! Fui roubado, pai! Me ajuda!". É um golpe baseado na estatística. O telefonema inesperado, numa manhãzinha de sábado, desperta com um salto quem têm filho da mesma idade e sexo do detento do outro lado do fone. Temendo o pior, os mais suscetíveis acabam se convencendo que devem seguir a orientação da voz apavorada, mesmo se a ligação vier "sem ID do chamador". Como no telemarketing, a taxa de sucesso pode chegar a 3%.

Para 97% ou mais dos que receberam esse mesmo telefonema terá sido no máximo um susto. Para os sem descendentes, uma curiosidade a contar para os amigos ou comentar no Facebook. Mas para 100% dos chamadores é mais um dia de trabalho, supervisionado pelo gerente de alguma facção criminosa.

Os telefonemas mal sucedidos consomem de 15 a 25 segundos. Dá três por minuto, 180 por hora, mais de mil por dia. Se a taxa de sucesso for de 1%, dez vítimas terão contribuído para a remuneração do negócio ao final da jornada. Multiplique-se pelo número de presos com celular a serviço do PCC, CV e outras siglas que comandam os presídios brasileiros. Daí ter se tornado mais uma anomalia normalizada no Brasil. Não é a única.

Uma versão modernizada do golpe é aplicada aos amigos e conhecidos de quem tem um smartphone roubado. O ladrão dá preferência aos que já estão ligados - na mão dos donos, ou nos painéis de seus carros com o Waze a indicar-lhes o caminho. É que assim o celular já vem desbloqueado: basta vasculhar nas trocas de mensagens pelo WhatsApp para achar as vítimas.

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Passando-se pelo dono do aparelho, o ladrão digita: "Amor, esqueci a senha do banco. Vc lembra?" Ou então: "Amiga, preciso fazer um pagamento e estou sem saldo. Vc pode me fazer uma transferência?" A taxa de sucesso é ainda mais alta porque a vítima tende a acreditar que quem está lhe fazendo o pedido é mesmo quem diz ser. A memória das conversações serve de subsídio para o golpista aumentar sua credibilidade. É normal cair.

Outra cena está virando clichê na capa de jornais, na TV e na internet. Dezenas de mulheres - pesos diversos, idades indefinidas, quase sempre da cor que o IBGE convencionou chamar "parda" - se aglomeram na porta de um presídio por horas, dias a fio, sob sol e chuva, com um único objetivo: saber se o parente preso lá dentro está vivo. Raras vezes obtêm uma resposta.

Do presidente ao carcereiro, do governador ao policial, nenhum representante do estado é capaz de dizer-lhes com absoluta certeza quantos presos havia, quantos permanecem, quantos fugiram, quantos estão vivos, quantos morreram. A cada dia descobrem-se mais corpos, dão por falta de mais fugitivos. A ignorância é ainda maior nos presídios privatizados.

A presidente do Conselho Nacional de Justiça quer um censo para contar os presos, saber quem, dos que ali estão, foi condenado e quem não foi. Ou é isso, ou é propor uma joint-venture às facções que comandam os presídios: pedir que dividam com a Justiça parte da sua contabilidade. Não precisam revelar dados financeiros, apenas o nome dos seus contribuintes encarcerados.

A grande vantagem em relação a um censo é que os dados seriam atualizados permanentemente. Entradas e saídas, mortos, vivos, tudo certinho. O custo depende de negociação. Quem sabe algum governante recentemente levado para o outro lado das grades pudesse fazer a intermediação - mediante comissão, é claro.

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