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Movimentos, direitos, ideias

Vergonha é a tolerância com a desigualdade social, dizia Plínio

Ele viu a política como instrumento para construir uma sociedade mais justa (e não como forma de aumentar fortunas pessoais)

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Por Roldão Arruda
Atualização:

Acompanhei a trajetória de Plínio de Arruda Sampaio, como repórter, durante mais de uma década. Ele foi um desses casos raros, raríssimos, de políticos que melhoram com a velhice.

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Ao receber a notícia de sua morte, na terça-feira, 8, pouco antes da derrota do Brasil para a Alemanha, lembrei que ele sempre me chamava de primo. Assim que me avistava, dizia, animado: 'Como vai, primo?'. Segundo suas explicações, a árvore genealógica dos Arruda tem poucos ramos, o que torna todos nós meio aparentados.

No caso específico dele, o parentesco parecia lisonjeiro. Não soava bem, no entanto, quando pensava em outros possíveis primos da política - como o ficha suja de Brasília.

Nunca o vi tão animado quanto na campanha presidencial de 2010. Estava afiadíssimo nos debates e entrevistas. Soube usar bem o sarcasmo e a ironia - duas pegadas bem características dele - e defendeu seus pontos de vista com radicalidade e entusiasmo admiráveis. Parecia duas vezes mais disposto do que quatro anos antes, quando o acompanhei na campanha para o governo do Estado.

É possível supor que essa repentina força de Plínio vinha do fato de saber que a campanha de 2010 era a última arrancada na sua vida? Sim. Mas prefiro a hipótese de que ela surgiu da aproximação com os jovens.

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Ele sentiu-se um bem-aventurado ao ver que seu estilo despojado e suas propostas empolgavam jovens que começavam a se politizar e que estavam situados além dos limites da sempre engajada militância do PSOL - o seu partido.

Falou disso várias vezes. Foi essa percepção, além da falta de recursos do partido, que o levou, já octogenário, a aprimorar suas habilidades no uso de redes sociais. Dedicou grande parte do tempo de campanha a esse tipo de mídia.

Sua proximidade com os jovens manteve-se após as eleições. Nos protestos de junho do ano passado, esteve na rua logo no início, no momento mais quente, ao lado da rapaziada do Movimento do Passe Livre. Com o físico fragilizado e o ar desarvorado e profético que a velhice moldou em suas feições, disse aos repórteres que foram ouvi-lo: estava lá para ajudar a proteger os "meninos" da violência policial.

Outro momento em que encontrei Plínio muito entusiasmado aconteceu logo após a posse de Lula, em 2003. Ainda estava no PT. Havia suado a camisa na campanha do operário para a Presidência da República - assim como em todas as outras campanhas do partido - e acabara de ser escolhido para coordenar o grupo que prepararia o 2.º Plano Nacional de Reforma Agrária.

Essa era a praia dele. No governo do presidente João Goulart, foi o relator da comissão especial que fez uma proposta de reforma agrária para o País. Imagino, olhando para trás, a bomba que ele enfrentou. Afinal, num país onde a propriedade rural era extremamente concentrada, com baixo índice de produtividade, e onde seis entre cada dez cidadãos ainda viviam na roça, na maioria das vezes de maneira muito pobre, falar em redistribuição de terra era considerado uma provocação. Das mais graves.

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Plínio pagou por isso. Quando veio o golpe de 1964 foi um dos primeiros cidadãos a ter seus direitos políticos cassados. E logo depois ele e sua família tiveram que deixar o País. (Leia mais sobre a vida dele no breve e preciso perfil que o repórter Gabriel Manzano escreveu para o Estadão.)

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O entusiasmo com o PT no poder durou pouco. O plano de reforma agrária que ele entregou ao presidente não saiu do papel. Pela quantidade de vezes em que o ouvi fazer referências a esse episódio nos anos seguintes, acreditoque foi ali que ele rompeu de fato com o PT - partido que ajudou a fundar em 1980. A saída dele em 2005, após o escândalo do mensalão, apenas selou o desencanto.

Plínio não suportava a corrupção (e defendia a transparência total nos gastos públicos). Mas não achava que ela fosse o maior problema do País. O que deve nos envergonhar, sempre disse, é a ilimitada tolerância ao fato de o Brasil ser um dos campeões mundiais no trágico ranking da desigualdade social.

Para superar esse problema secular, defendia a realização de três reformas que considerava estruturais: a agrária, a urbana e a tributária. Criticava o governo do PT porque, em vez de encarar e levar adiante essas reformas, teria optado pelo combate à desigualdade por meio de gastos assistenciais do Estado. O Bolsa Família e outros programas semelhantes a ele, na avaliação de Plínio, são focalizados e atenuam situações gritantes de pobreza, mas não alteram as estruturas que continuam provocando desigualdades.

Plínio era católico. Praticante. Desses de ir à missa, confessar e comungar regularmente - e não apenas em batizado e casamento. Sua visão de justiça social era cristã, alicerçada na doutrina social da Igreja Católica, a partir da encíclica Rerum Novarum, de 1891. Mais tarde ele se aproximou da esquerda e da Teologia da Libertação, que aceita o marxismo como instrumento de análise da sociedade.

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Sua fidelidade à doutrina católica criou-lhe alguns problemas. Enfrentava uma saia justa atrás da outra no meio em que circulava politicamente quando as conversas enveredavam para temas como aborto e união entre pessoas do mesmo sexo.

O curioso é que, ao envelhecer, em vez de se fechar, ele foi se tornando cada  vez mais aberto ao debate dessas e de outras questões que envolvem ética, moral, religião. Registrei isso numa reportagem que fiz sobre um dos debates durante a campanha presidencial.

Pode-se dizer que algumas propostas de Plínio estão ultrapassadas. Que era intransigente. Que ele não avaliava corretamente o brutal jogo de forças políticas que movem (ou sangram) o Brasil. O debate é do jogo democrático. O que não se pode fazer é negar-lhe reconhecimento como cidadão que soube ver a política como instrumento para construir uma sociedade mais justa (e não como forma de aumentar fortunas pessoais).

Envelheceu pendendo cada vez mais para a esquerda, ao contrário do que ocorre com a quase totalidade dos políticos. Foi essa tendência que o levou, em 1980, a afastar-se do MDB, de Fernando Henrique Cardoso e José Serra, seus companheiros no exílio e na luta pela redemocratização, para ajudar na fundação do PT. Foi essa também a causa do desentendimento com o PT.

Plínio, como já disse, não era meu primo de verdade. Uma pena. Considerando sua vida política, eu teria motivos de sobra para me orgulhar de ser parente dele.

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Lembrete: amigos, familiares, companheiros e admiradores de Plínio vão homenageá-lo com uma cerimônia religiosa no sábado, 19, às 12 horas, na Catedral da Sé, em São Paulo.

 

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