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Por Mário Scheffer

Só um cordão sanitário pode deter Le Pen, na França, e Bolsonaro, no Brasil

Dá tempo de o País, até outubro, se servir da lucidez e do desacerto da eleição francesa

Por Mário Scheffer
Atualização:

Em saúde pública, cordão sanitário é a barreira criada para frear a propagação de doenças infecciosas e epidemias, por meio da restrição da entrada ou saída de pessoas de determinada área, o que foi decretado em Wuhan, na China, o epicentro inicial da covid-19.

Metaforicamente, na política, cordão sanitário é a ideia de isolar e impedir o contato com uma ameaça extremista e abominável à democracia.

A França pode ser o Brasil amanhã, mas existem agravantes locais. Bolsonaro só cresce nas pesquisas e o cordão sanitário é pura miragem. Foto: Gabriela Biló

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O termo foi difundido nos anos 1990, na Bélgica, quando partidos se uniram para excluir políticos em ascensão, nacionalistas e xenófobos, de qualquer governo de coalizão, mesmo procedimento usado agora pelo Parlamento português para isolar a agremiação ultradireitista Chega.

No segundo turno contra Marine Le Pen, na França, o presidente Emmanuel Macron apelou ao cordão sanitário, uma "frente republicana" de partidos de direita e esquerda.

A tripartição entre esquerda, direita e extrema direita na França, como explicam alguns cientistas políticos, caracterizaria um quadro original e, por isso, advertem sobre os limites de uma perspectiva comparada com outros países, como o Brasil.

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De qualquer forma, em 2022, lá e cá, confirmada a presença de Bolsonaro no segundo turno, a clássica competição eleitoral bipolar adquire colorações dramáticas.

Disputas encarniçadas vêm se repetindo em vários países, desde que a extrema direita passou a usar máquinas públicas e atenuar retóricas para vencer eleições, depois de ter ganhado terreno junto a sociedades desintegradas, adubado por ataques às instituições e à democracia liberal.

O cordão sanitário acionado por Macron foi exitoso há cinco anos, mas, na Hungria, uma coalizão inédita de seis partidos não impediu a vitória do extremista Viktor Orbán, que acaba de conquistar seu quinto mandato.

Devido à cesta de votos reduzida pela abstenção, com parte do eleitorado em cima do muro e outra parte encarando a escolha do "mal menor", o duelo na França deve ser mais duro desta vez.

A França pode ser o Brasil amanhã, mas existem agravantes locais. Bolsonaro vem crescendo aos poucos nas pesquisas e o cordão sanitário é pura miragem, deduzidas as tribulações da frente ampla que se pretende em torno de Lula e da improvável terceira via, que busca candidato de consenso entre União Brasil, MDB, PSDB e Cidadania.

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Estudiosos consideram Bolsonaro, Le Pen e Orbán, assim como Donald Trump, Matteo Salvini e outros, crias do mesmo fenômeno novo, ora chamado de direita radical ou nacional-populismo, ora de extrema direita ou pós-fascismo.

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A dificuldade em categorizá-los parte também das diferenças entre eles, embora todos adotem, como tática, polarizar a sociedade, explorar temas divisórios e questões identitárias, manipular redes sociais e novas tecnologias.

Em campanha, tanto Le Pen quanto Bolsonaro priorizam a desinformação como arma de agitação social, apontando culpados - os políticos, os "esquerdistas" etc. Em seguida, se apresentam como salvação.

Ao ser pautada pelo modus operandi assombroso da extrema direita e pela incontornável necessidade de uma coalizão excepcional para detê-la, a eleição, na França e no Brasil, faz com que temas, que são motivos reais de preocupação nacional, desapareçam ou fiquem em segundo plano.

Cordões sanitários, em epidemias e em eleições, têm custo social alto. Enquanto no primeiro uso, liberdades individuais são afetadas, mas se protege a população, no outro, programas de governo são esterilizados, nivelados por baixo.

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A covid-19 expôs, de forma cruel e em número de mortes, erros de governantes e deficiências de serviços de saúde.

Eleição em ano de pandemia seria, portanto, momento histórico e único para fazer da saúde a vanguarda do debate político, para passar a limpo modelos e alternativas capazes de tornar um sistema de saúde mais preparado, eficiente e justo.

No caso do Brasil, o SUS é inadiável no debate eleitoral, pois, diferente da França, o país não conta ainda com um sistema verdadeiramente universal, bem avaliado pela população, majoritariamente financiado pelo Estado, que chega aos mais vulneráveis e não dá as costas para nenhum problema de saúde pública, seja aborto ou uso de drogas.

Argumenta-se que a guerra na Ucrânia e polêmicas sobre segurança, custo de vida e imigração contribuíram para ofuscar a saúde na campanha eleitoral francesa.

Chama a atenção, ainda, que Macron e Le Pen propõem soluções coincidentes para a saúde pós-pandemia, como a valorização e redução da carga de trabalho dos cuidadores de idosos, melhoria da administração hospitalar, combate aos "desertos médicos" em regiões desassistidas, com uso de teleconsulta, contratação de mais enfermeiros e maiores salários, repatriação da fabricação de medicamentos em território francês.

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As diferenças ficam reservadas a detalhes. Por exemplo, Le Pen quer criar um setor separado para cuidar dos idosos nos serviços de emergência; já Macron promete um check-up médico completo e gratuito aos 25, 45 e 60 anos.

Dá tempo de o Brasil, até outubro, se servir da lucidez e do desacerto da eleição na França.

Ainda assolado por desavenças, um cordão sanitário precisa ser urgentemente convocado para tentar barrar a reeleição de Bolsonaro, mas sem a imposição de hierarquia temática que impeça o escrutínio dos programas de saúde dos candidatos.

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