Mário Scheffer
12 de maio de 2022 | 05h00
Com as atenções voltadas para o risco de atropelamento da democracia, segundos de tempo foram ocupados pelo reconhecimento do papel essencial de profissionais da saúde.
O Congresso Nacional aprovou o piso salarial da enfermagem, uma lei como há muito não se via, tamanhas são a adesão parlamentar e a repercussão no sistema de saúde.
Tudo que envolve o tema é superlativo.
Foram mais de vinte anos de idas e vindas na Câmara e no Senado.
A campanha da categoria até a aprovação definitiva do piso foi intensa; peça de divulgação produzida pelo Conselho Federal de Enfermagem cita “os profissionais a quem você confia a vida”
Estima-se que mais de 1,3 milhão de enfermeiras e enfermeiros, entre 2,5 milhões que têm registro em conselhos profissionais, recebam hoje abaixo dos valores definidos na nova lei, que vão de R$ 2.375 a R$ 4.750 mensais, conforme o nível de formação.
Já o impacto orçamentário anunciado, caso o governo pague a conta toda, é da ordem de R$ 16 bilhões ao ano, embora a má qualidade dos dados disponíveis sobre os trabalhadores a serem beneficiados ainda provoque ruídos.
Se antes o cálculo contábil emperrava a discussão, a pandemia e a proximidade da eleição abriram os olhos do Parlamento para o valor da enfermagem.
Ironicamente, os médicos ficaram de fora. Organizações representativas da enfermagem, unidas e discretas, despertaram simpatia suprapartidária à causa. Já as entidades médicas que fecharam com Bolsonaro não obtiveram até hoje nenhuma conquista relevante para os médicos ou para o SUS.
A covid mostrou à população atributos mais abrangentes da enfermagem, para além dos estereótipos de anjo, herói ou de atividade inatamente feminina.
Foram esses trabalhadores que lideraram a vacinação, cuidaram de pacientes ventilados, asseguraram o último adeus a doentes à beira da morte, denunciaram a falta de testes e de equipamentos de proteção individual.
Associada à compaixão, a enfermagem é mais do que isso, pois exige ciência, habilidade e conhecimento.
Diferentemente de outros países, no Brasil há restrições regulatórias para a potencial expansão da enfermagem no sistema de saúde, enquanto a proliferação de cursos privados e de ensino a distância colocam em xeque a qualidade da formação.
Mesmo assim, a profissão tem lugar decisivo na prevenção de doenças, no primeiro contato com serviços de saúde e nos tratamentos de longa duração, acolhendo grupos vulneráveis que outros profissionais têm dificuldade de alcançar.
É justo e necessário remunerar dignamente a enfermagem, porém o Congresso amarrou o piso aprovado a fontes de financiamento ainda inexistentes.
O fato remete a uma tradição embusteira. Políticos costumam se reeleger inaugurando unidades de saúde, mesmo sabendo que não haverá de onde tirar recursos para os equipamentos e a contratação de pessoal.
Tão logo surgiu a nova lei, o oportunismo viralizou.
Santas Casas aproveitam para embutir, na conta do piso da enfermagem, um socorro adicional à eterna pindaíba dos hospitais filantrópicos mal geridos.
Hospitais privados ameaçam repassar o novo custo aos planos de saúde que, por sua vez, ameaçam levar o valor às mensalidades dos usuários.
Chantagista, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, busca condicionar o maior salário da enfermagem à legalização do jogo do bicho e outros jogos de azar.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, aproveita para agradar o setor da mineração, aniquilando a ideia, ventilada por alguns, de bancar o piso com o aumento da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM).
A necessidade de uma lei complementar, para criar o suposto fundo de R$ 16 bilhões ao ano, e de uma emenda à Constituição, para dar garantia jurídica ao piso, pode empurrar o desfecho para 2023 em diante.
Vale lembrar a peleja dos agentes comunitários de saúde, que tiveram o piso salarial estipulado em lei, no governo Dilma, e suas atribuições profissionais sancionadas por Temer. Até hoje são incertos, e sem reajustes garantidos, os recursos complementares da União, repassados aos municípios para o cumprimento da legislação.
A diferença é que, em ano eleitoral, o apoio da enfermagem é disputado por candidatos a deputado federal e senadores, que tentam extrair votos desse grande contingente de eleitores e influenciadores.
Na tramitação da lei, autorias e méritos foram diluídos entre políticos governistas e da oposição. Mas como nada passa na Câmara sem a bênção de Arthur Lira, e como cabe a Bolsonaro sancionar, fica difícil saber quem levará maior vantagem no final.
Agora que o impulso original de Bolsonaro pelo golpismo tomou forma, é preciso agitar o vento para evitar a tempestade.
Pouco foi dito sobre saúde no lançamento da pré-candidatura de Lula e Alckmin, quando a união de diferentes e a retórica calculada se apresentaram para enfrentar a ameaça maior.
A advertência “pode ter golpe” agiliza coalizões, mas também é o caminho mais curto para evitar o debate de outros temas nacionais.
Não se pode compreender um sistema complexo, como o da saúde, sem fazer o esforço de decompô-lo em suas partículas elementares.
Cada uma das profissões da saúde, não só a enfermagem, merece salário e condições de trabalho decentes.
O SUS universal é mera aspiração, o financiamento público é insuficiente e inexiste uma política nacional de recursos humanos para a saúde.
Movimentos centrífugos das partes, ainda que positivos, sinalizam o predomínio do menosprezo pelo todo.
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