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Por Mário Scheffer

Bolsonaro deve sancionar lei que permite uso ampliado de cloroquina no SUS

Lei aprovada no fim do mês passado dá poder inédito à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec); na prática, o Ministério da Saúde poderá discordar da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na indicação de uso de medicamentos

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Por Mário Scheffer
Atualização:

Aprovada pela Câmara dos Deputados na semana passada, a lei que redefine regras de liberação de medicamentos no SUS aguarda a sanção ou veto do presidente da República.

Para atrair a atenção sobre si mesmo e manter a claque unida, o governo Bolsonaro alimenta obsessões para as quais não há limites.

Vozes da ciência, leis e prerrogativas das instituições da saúde, evitaram a maior disseminação da cloroquina nos serviços do SUS. Foto: LQFEx/Ministério da Defesa

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Não basta contar com "cloroquinistas" em cargos do Executivo e partidários em conselho de medicina, é preciso desfigurar a legislação da saúde.

No Congresso Nacional, tramitações que interessam ao governo se aceleram à medida que emendas parlamentares são liberadas, com previsão de escoamento de até R$ 25 bilhões antes das eleições de outubro.

O projeto de lei original do Senado, que passou fácil no plenário da Câmara em 23/02, dá poder inédito à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). Na prática, o Ministério da Saúde poderá discordar da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na indicação de uso de medicamentos.

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Ao longo da pandemia de covid, o chamado tratamento precoce assumiu feições diversas, conforme variava a intenção de enganar, o grau de oposição aos fatos científicos e o estilo de apresentação dos que se revezavam na defesa dos remédios imprestáveis.

Vozes da ciência, leis e prerrogativas das instituições da saúde evitaram a maior disseminação do embuste nos serviços do SUS, embora alguns prefeitos e empresas de planos de saúde alinhadas ao presidente, como Hapvida, Prevent Senior e Unimeds tenham se lambuzado com o "kit-covid", segundo registros da CPI do Senado.

Agências reguladoras, entra governo sai governo, são loteadas por indicações políticas e enodoadas pela "porta giratória", que é a troca de papéis entre agentes públicos, de um lado, e membros de mercados regulados, de outro. Sob Bolsonaro, a situação piorou, a ocupação das diretorias não exige o mínimo conhecimento técnico, a única credencial é a fidelidade militante.

A Anvisa não é de todo um álisso, a flor-de-mel que cheira bem, mas seu pessoal de carreira costuma executar adequadamente atribuições legais de registro de medicamentos.

Seguindo padrão mundial, a Anvisa avalia a eficácia e a segurança do produto novo candidato para uso específico, antes de decidir pela autorização de venda no Brasil.

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Neste momento já é possível saber se o medicamento é inovador, se é mais eficaz que outro existente para tratar o mesmo problema de saúde ou, ainda que tenha a mesma eficácia, se apresenta menos efeitos adversos ou é significativamente mais barato.

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Em outra raia, o Ministério da Saúde decide pela incorporação ou não no SUS, assessorado pela Conitec, que compara o medicamento com tratamentos já utilizados, dimensiona benefícios, riscos e impactos no orçamento e na logística da rede pública.

O que está sendo proposto é a inversão de papéis: a Conitec, aparelhada pelo atual governo, tomará em parte lugar da Anvisa, criada em 1999 para ser uma entidade administrativa independente.

A nova lei afaga o comportamento paranoico de Bolsonaro e sua implicância com a Anvisa, acentuada após o posicionamento do órgão a favor da vacinação de crianças contra a covid-19.

Mas também diz muito sobre o desleixo de deputados e senadores na condução do debate sobre acesso a medicamentos no Brasil.

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Travada nos serviços ou guichês virtuais do SUS, dos planos de saúde e do Judiciário, a batalha real dos cidadãos que suplicam medicamentos e tratamentos negados sempre acaba mal no Congresso Nacional.

Parlamentares têm por hábito ocupar o púlpito em apoio a sofredores, mas a falta de lideranças sanitárias no Congresso mantém o SUS universal ausente das proposituras.

O que parlamentares de diversos partidos e de amplo espectro ideológico têm promovido é a desregulamentação e a segmentação da assistência farmacêutica no sistema de saúde.

O que se viu em outro projeto recente, que obrigava planos de saúde a cobrir medicamentos de uso oral contra o câncer, é revelador.

Deputados amarelaram, fizeram acordo com o líder do governo, Ricardo Barros, para a manutenção do veto total de Bolsonaro ao projeto que antes haviam aprovado.

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Aceitaram no lugar uma regra capenga, contida em medida provisória, que prevê prazo de seis meses para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) atualizar ou não o rol de coberturas obrigatórias dos planos privados.

Igualmente obscena foi a lei sancionada em 2017 pelo então presidente da República em exercício, Rodrigo Maia, autorizando a produção e venda de remédios para emagrecer, antes banidos pela Anvisa.

Em outubro de 2021, depois de muito consumo danoso de anorexígenos no País, o STF derrubou a lei e reiterou o protagonismo da Anvisa para decidir.

Em 2016, a presidente Dilma Rousseff sancionou sem vetos outra aberração que veio do Congresso, a liberação da fosfoetanolamina sintética, a polêmica e inócua "pílula do câncer". Em 2020, o STF declarou a inconstitucionalidade do ato.

Uma lei que autoriza o Ministério da Saúde empurrar goela abaixo da população medicamento cujo uso não é aceito pela Anvisa talvez tenha final semelhante e seja mais adiante defenestrada pelo STF.

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A fita que se repete não é, todavia, o remédio, mas sintoma do quanto no Brasil a saúde pública é maltratada pela política.