Por Artur Monte Cardoso e Lucas Andrietta*
O IBGE publicou a última edição da Conta-Satélite de Saúde. Os dados detalham quem compra, quem produz e como se distribui a renda gerada pelas atividades econômicas ligadas ao sistema de saúde.
A histórica desproporção, de gastos privados maiores que gastos públicos, se agravou.
Apesar do papel crucial desempenhado pelo SUS, os gastos com saúde no Brasil divergem muito de uma trajetória compatível com o acesso universal, gratuito e igualitário, previsto na Constituição Federal.
A comparação com experiências internacionais ajuda a balizar debates sobre qual sistema de saúde temos, qual devemos almejar e que tipo de mudanças são necessárias.
O gasto total com saúde no País não é baixo e aumentou nos últimos anos, em termos reais, chegando a sonoros R$711,4 bilhões em 2019. Isso equivale a 9,6% do PIB, bem acima dos 8% de 2010, maior que países da OCDE, que gastam, em média, 8,8% do PIB com saúde.
Contudo, considerando a paridade do poder de compra, o gasto per capita no Brasil (US$1.514,00) representa apenas 37% da média da OCDE (US$4.087,00). Não chega a ser uma surpresa, dada a desigualdade econômica entre os países.
A sociedade brasileira destina à saúde parcela considerável de seus recursos, mas atinge um volume per capita significativamente menor que outras nações.
Em 2017, o Brasil gastava US$1.280,00 per capita com saúde, muito menos que Chile, Uruguai e Argentina.
Num cenário como esse, há disputas acirradas pela distribuição dos recursos, o que a conta-satélite também evidencia.
O traço mais marcante da saúde no Brasil é a desigualdade entre o gasto público e o gasto privado.
Países que investem em sistemas de saúde universais têm financiamento predominantemente governamental, em comparação ao total de recursos. É o caso de Cuba (89,4%), Portugal (60%), Espanha (67%), Reino Unido (79%) e países escandinavos (acima de 80%). No Brasil, essa proporção atingiu 39,8% em 2019, o valor mais baixo da série desde 2010.
Os dados expõem o subfinanciamento a que o SUS está submetido, mas, sobretudo, revela que a parte majoritária (60,2%) dos gastos no Brasil é financiada por famílias e empresas, que compram serviços assistenciais, incluindo planos e seguros privados (39,7%) e medicamentos (17,2%).
A predominância do gasto privado acentua as fortes desigualdades no acesso à saúde no Brasil. Plano de saúde é principalmente benefício empregatício e não garante um padrão único, dadas as diferenças dos produtos comercializados. Além disso, como revelou outro estudo do IBGE, a Pesquisa sobre Orçamentos Familiares (POF), os gastos com saúde comprometem parcela importante - e crescente - da renda das famílias, sobrecarregando ou excluindo as famílias mais pobres.
O mercado de medicamentos (equivalente a 1,8% do PIB) exibe um dado alarmante: apenas 7% do consumo final é feito pelo governo, enquanto 93% recaem sobre as famílias. O consumo privado de medicamentos sustenta o imenso setor de farmácias e drogarias, e a atividade de comercialização gerou uma margem de R$39 bilhões em 2019.
Este padrão de despesa explica a exuberância dos mercados setoriais. Empresas líderes ostentam desempenho invejável e inequívoco no período recente. Mantiveram-se imunes às oscilações econômicas, ao agravamento da crise social e não sofreram abalo durante a pandemia de covid-19.
Hipertrofiado por estímulos fiscais de diversos tipos, o crescente empresariamento do setor pouco contribui para a melhoria das condições de saúde da população brasileira.
Embora realizem cada vez mais consultas, exames, internações e procedimentos, os planos de saúde e os serviços assistenciais pagos diretamente pelas famílias mantêm um padrão de acesso e uso de cuidados à saúde altamente estratificado e desigual.
A persistência das desigualdades no financiamento da saúde ao longo de governos, independentemente da orientação ideológica, não pode passar despercebida. É preciso compreender as contradições entre as intenções universalistas e o orçamento minguado da saúde.
Noções fantasiosas
Com noções fantasiosas sobre a necessidade de "inovação" e "ganhos de eficiência", sucessivos governantes e quadros técnicos têm justificado o pé no freio dos gastos públicos com saúde.
Nas próximas eleições, é possível que as polêmicas sobre a pandemia tragam consigo um exame mais extenso e aprofundado sobre o financiamento do SUS.
Dizer que não é preciso gastar mais com saúde pública fará com que o País continue desprovido de insumos básicos, profissionais de saúde e instituições públicas robustas para enfrentar a próxima emergência sanitária.
Gastar mais não é o oposto de usar bem e criteriosamente os recursos. Pelo contrário, é necessário fortalecer instituições e a democracia para romper com o ciclo que impede a efetivação do direito formal à saúde.
É claro que uma agenda favorável ao SUS deve denunciar as limitações ao gasto público impostas nos três níveis da federação. A Emenda Constitucional 95 é símbolo maior, mas não o único. Mesmo o padrão de financiamento da saúde estabelecido em 2000, pela Emenda Constitucional 29, conseguiu manter um pequeno piso, em crescimento insuficiente para lidar com a aspiração do SUS.
Para atingir um sistema realmente universal e igualitário é preciso criar mecanismos tributários que garantam recursos públicos adequados, mas que também sejam capazes de alterar o padrão predominantemente privado do gasto com saúde no Brasil.
*Artur Monte Cardoso é professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (UFRJ); Lucas Andrietta é professor da Faculdade de Medicina (USP). Os autores escreveram o artigo a pedido do Blog Política&Saúde.