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Direto ao assunto

Viva o contra-almirante Barra Torres

Ao contrário do Exército, que usa seu expediente discutindo como reagir à indignação de Bolsonaro contra nota do comandante, presidente da Anvisa, contra-almirante, respondeu com brio e honra

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Por José Neumanne
Atualização:

 

"Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, Senhor Presidente. Determine imediata investigação policial sobre a minha pessoa, aliás, sobre qualquer um que trabalhe hoje na Anvisa, que com orgulho eu tenho o privilégio de integrar", registrou o texto da nota oficial do presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o contra-almirante Antonio Barra Torres, publicada no sábado, 8 de janeiro. Foi sua reação a uma futrica espalhada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, insinuando interesses escusos da agência por ele dirigida só por ter adotado práticas opostas às pregadas pelo atual chefe do Executivo.

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Subordinado ao capitão-terrorista na condição de oficial da reserva da Marinha, como principal executivo da agência, responsável em última instância pela vida e saúde dos cidadãos brasileiros, civis e militares, todavia, ele tem mandato e autonomia garantidos por lei. E não pode ser demitido por capricho de nenhuma autoridade da República. Por isso, sentiu-se à vontade para cobrar do abusado comandante das Forças Armadas uma retratação, caso o desaforado supremo magistrado não disponha de provas contra ele. "Se o senhor não possui tais informações ou indícios, exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate", cobrou o executivo, indicado pelo próprio Bolsonaro ao cargo e autorizado a ocupá-lo, após sabatina no Senado. Por essa reação, Torres, que já tinha dado prova de bolsonarismo explícito, ao comparecer a seu lado em manifestação antidemocrática na Esplanada dos Ministérios, em 15 de março de 2020, usou sua independência. Ele, aliás, já tinha manifestado seu arrependimento de tê-lo feito em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado, em maio do ano passado. Isso fortalece sua reação altiva e briosa contra mais uma mentira irresponsável do gestor público mais poderoso do País.

Ao contrário do antigo aliado, que se mostra cada vez menos propenso ao trabalho, ao diálogo e à sensatez que se exige de um chefe de Estado, o oficial-general reformado mostrou portar-se à altura de suas responsabilidades públicas e da patente que ostenta.

Seu gesto foi similar ao do general de quatro estrelas da ativa Paulo César Nogueira de Oliveira, comandante do Exército, que assinou documento de oito páginas em que reconhece que o avanço da vacinação permite a possibilidade da normalização das atividades.  Entre os 52 itens do texto, o Exército destaca que o retorno ao trabalho deve ser avaliado desde que respeitado o período de 15 dias, após a imunização. "Os casos omissos sobre cobertura vacinal deverão ser submetidos à apreciação do DGP (Departamento-Geral do Pessoal), para adoção de procedimentos específicos", segundo o texto. Embora a nota oficial tenha despertado reações animadas, celebrando o isolamento do chefe do governo entre os militares, há diferenças fundamentais entre os dois casos. Primeiramente, o período da ditadura militar basta para tornar claras as diferenças de força e poder de um oficial da ativa (e no comando) da força terrestre, em relação a  outro da força marítima, e da reserva. E, last, but not least, a situação funcional também é muito diversa. Como foi demonstrado na última substituição do chefe do Exército, em que Oliveira entrou no lugar de Edson Pujol, gestos de independência de um comandante não garantem sua permanência no posto. Muito pelo contrário. O comando geral das Forças Armadas não é figurativo, mas real, mesmo em se tratando de um pato manco, como está prestes a ser Bolsonaro. E, no caso atual, o capricho de um presidente mandrião e insensato pesa muito numa decisão como essa.

Felizmente o poder de trocar o chefe dos estrelados de verde não basta para substituir um diretor de agência de fiscalização. Sendo, tendo sido ou não bolsonarista, mesmo sem carteirinha, Torres é indemissível. O ocupante do poder sobre a União Federativa poderá trocar quantas vezes lhe aprouver o chefão da pasta da Saúde, o que é um absurdo provável, mas não poderá fazer, graças a Deus, o mesmo com o da agência que vigia os atos do Executivo na gestão da saúde pública ou de qualquer outra.

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Isso, contudo, em nada diminui o gesto ousado e corajoso de acender uma lanterna neste reino da escuridão de um desgoverno apodrecido pelo comportamento vil dos ocupantes dos gabinetes do Palácio do Planalto, desgovernados pelo ódio, ao qual um deles é especificamente destinado. E de grande parte dos outros três Poderes harmônicos apenas no objetivo comum de atingir a impunidade geral e o descontrole total. Neste momento, em que os trabalhos de investigação da CPI da Covid foram encerrados e o Tribunal de Contas da União (TCU) arrefeceu sua vigilância, caindo na modorra geral, ante a desfaçatez da cúpula da república do despudor, a altivez de Barra Torres merece ser apontada, destacada e aplaudida para que outros focos de luz sanitária surjam indicando o caminho para o voto do povo daqui a dez meses.

Descobrir que a Marinha de Tamandaré não reza mais apenas na cartilha do capitão Francisco José Marques da Rocha, comandante da fortaleza de São José, promovido por ter tornado possível a morte por asfixia dos companheiros de cela de João Cândido, o almirante negro da canção de João Bosco e Aldir Blanc, sucesso de Elis Regina, já é uma boa notícia. Saber que a Anvisa não segue o manual negOcionista do capitão-terrorista, mais ainda. Por isso, demos graça.

*Jornalista, poeta e escritor

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