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Direto ao assunto

Suprema embromação federal

Lobby do presidente do STF para garantir aprovação pelo Senado de reajuste do próprio subsídio é tão absurdo quanto o é garantia de suspender auxílio-moradia para juízes em geral para justificar tal descalabro

Por José Neumanne
Atualização:

Toffoli sempre faz discursos de bondade e boa fé, mas nem sempre estes traduzem fielmente o que, de fato, ele pretende. Foto: Charles Scholl/Estadão Conteúdo

Nada se salva no grotesco episódio do reajuste de subsídios dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para R$ 39,2 mil por mês, autorizado em lei aprovada por folgada maioria de parlamentares presentes à sessão convocada pelo presidente do Senado, Eunício Oliveira. E este já fora dispensado de cumprir mais um mandato de oito anos na Casa por decisão sábia e soberana dos eleitores de seu Estado do Ceará.

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O reajuste começou a ser exigido no mandato presidencial de dois anos do ministro Ricardo Lewandowski, que antes fora revisor do julgamento da Ação Penal n.º 470, a do mensalão, ocasião em que travou pesados embates com o relator e depois presidente, Joaquim Barbosa. Em dois anos no cargo, Sua Excelência comportou-se como dirigente sindical, reivindicando privilégios para ele próprio e também para todos os membros da magistratura, da qual, como comandante da Corte Suprema, se considerava "poderoso chefão". A pauta sindicalista do membro do colegiado no topo do Judiciário já era totalmente imprópria, mas à época foi pouco levada em conta, por não ser surpreendente partindo de quem partia e, ainda, porque, mesmo existente, a crise econômica da família brasileira não tinha chegado ao estado de crueldade atualmente sofrido.

O índice que mais clama na exposição dessa situação é o total dos desempregados em seu nível mais elevado, até estonteante, de 14 milhões de trabalhadores, alcançado sob a presidência de sua sucessora, Cármen Lúcia. Esta, justiça lhe seja feita, comportou-se de forma exemplar nesse particular. A procuradora pública mineira, que sempre teve vida social muito recatada, ao contrário de colegas muito mais pródigos no uso de seus vencimentos, que, aliás, servem de limite para as folhas de pagamento não apenas do Poder a que servem, mas de toda a União, nunca misturou sua atividade judicante com reivindicações de remuneração. Na condição de chefe do plenário de última instância, ela nunca encaminhou o pleito e, com isso, seus subsídios e os dos colegas ficaram estagnados desde 2014, como propagam os que agora o reivindicam como se fossem recuperação de perdas acumuladas do passado. Por mais realista que seja o argumento, ele se torna, mais do que hipócrita, cínico, se se partir do princípio de quem paga a conta, e não de quem se beneficia do alto cargo para se dar bem. De 2014 para cá a economia brasileira andou para trás e os trabalhadores que remuneram os ministros foram desempregados ou, no mínimo, não tiveram reajuste nenhum ou, ainda pior, receberam os salários reduzidos. A cobrança da "recuperação da perda" passou a ser, então, uma reivindicação sem nenhum senso de justiça social, virtude da qual eles tanto se jactam.

Dias Toffoli, que chegou ao "supremo" posto sem nunca ter sido aprovado num concurso para juiz de primeira instância, não se fez de rogado. E, ao substituir Cármen Lúcia, repetiu a pauta de reivindicações antes adotada por Lewandowski, com quem se acostumou a soltar criminosos abonados de colarinho branco, sob alegação errada de respeito à letra constitucional, na qual "ser considerado culpado" passou a ter o mesmo significado de "ser preso", o que os dicionários não avalizam. Reforçado pelo argumento da reposição da perda salarial, típica alegação de sindicalistas operários em datas de dissídios coletivos, o ministro que liberou o ex-patrão José Dirceu, condenado a 30 anos e meio de cadeia, até da obrigação de usar tornozeleiras, não teve pudor de reclamar publicamente do pleito da "categoria". E, segundo noticiário nunca desmentido, apelou pelo telefone aos senadores responsáveis pela aprovação final do pedido para lhe ouvirem o pleito, como faziam os chefes de polícia avisando aos sambistas nas primícias dos desfiles de carnaval. Ou seja, um magistrado sem concurso agiu como um mendigo com Chanel para tirar o pão dormido sem manteiga da boca do desempregado em nome da democracia, que, desde as raízes gregas, é tida como "igualitária".

Não sendo impossível agravar algo tão degradante, não é possível omitir que Dias Toffoli tentou amenizar a dureza de uma medida impopular como a que exigia de políticos cuja liberdade depende de sua penada autocrática, ou combinada com os colegas de regabofe, com uma compensação. Em troca, eles negariam a si mesmos e aos outros magistrados em geral o benefício do auxílio-moradia. Ora, o adicional ao vencimento é um privilégio absurdo, gozado por juízes, promotores e outros membros da casta dos marajás do serviço público, que não podem ser confundidos com os coitados dos barnabés. Os próprios defensores desse abono de casta reconhecem publicamente e sem pudor algum que não precisam da esmola para pagar o lugar de morar no exercício da função, o que só seria defensável para garantir a segurança de titulares de comarcas em ermos violentos e desprotegidos, o que está longe de ser o caso dos membros dos tribunais sediados em capitais. A mera enunciação dessa desigualdade patente entre julgadores e julgados é algo muito distante do que significa "justiça" pelos mesmos dicionários que não autorizam a tentativa deles de contestar a jurisprudência da autorização para tribunais de segunda instância determinarem a prisão de criminosos factualmente definidos como aptos a iniciarem o cumprimento de suas penas.

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Destarte, fique aqui combinado que não tem propósito nenhum cobrar o reajuste a ser pago pelos que perderam o emprego ou não tiveram seus salários aumentados e continuam bancando cada centavo dos milhares de reais que são depositados em suas contas polpudas. E também que a contrapartida oferecida é, de igual forma, injusta e carente de qualquer conceito de ética que seja aplicável no convívio civilizado de iguais.

A troca proposta por Toffoli, sem pudor, assemelha-se à "Lei da Compensação" consagrada por Jackson do Pandeiro no sucesso que fez com a interpretação do hilariante forró de Rosil Cavalcanti e oculta pelo sigilo telefônico entre ministro e senador. Se o reajuste esfola o pobre para garantir o luxo de maiorais do Judiciário, que têm garantia perpétua de emprego, aposentadoria pela mais alta remuneração e mais um rosário de benesses asseguradas por lei, o auxílio-moradia estabelece a injustiça como padrão para toda a magistratura. Ou seja, no afã de "compensar", Toffoli dispensou gasto contestado no próprio STF. E mandado para as calendas da burocracia mercê de uma decisão pra lá de corporativista do ministro Luiz Fux, ao dar seis meses de prazo à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal da Advocacia-Geral da União. Enquanto o reajuste causa ônus permanente, que produzirá um rombo que se repete. É como se ele oferecesse a troca de uma gaiola de belos e melodiosos canários belgas por um bando de andorinhas em revoada ruidosa em sua rota de migração.

E, mais grave, o acinte está sendo perpetrado com base em cálculos falsificados. O auxílio-moradia é uma despesa permanente e ilegal, apesar do lero-lero dos beneficiados e da cumplicidade dos "supremos", mas o desembolso do erário para pagá-lo não produz efeitos paralelos e colaterais no Orçamento federal. Já o reajuste produz um efeito-cascata bilionário de tal monta que os técnicos têm dificuldade até para calcular. Especialistas avaliam entre R$ 4 bilhões e R$ 6 bilhões o resultado dessa "reposição de perdas salariais" do time de morcegos protegidos pela venda que tapa os olhos da Justiça na estátua em frente ao prédio de seus gabinetes. O auxílio-moradia transfere do bolso do trabalhador para as togas dos magistrados R$ 1 bilhão 627 milhões 990 mil e 232 por ano e isso é, de fato, extravagante, mas representa menos da metade do gasto para compensar essa eventual economia, que não será feita. Toffoli sabe disso. Embora talvez sua massa encefálica não avalie o fosso abissal entre reajuste e prebenda. Nós, que pagamos ambas as contas, não devemos desprezar a consciência que tem do volume de dinheiro do Brasil real (da crônica atual de Machado de Assis) que gasta na parte que lhe toca de banquetes e regabofes da farra em que a suprema embromação federal do País oficial se refestela.

Nem tente calcular seu prejuízo pessoal nessa ignomínia, pois não dá. Mas convém guardar com zelo a lista dos senadores que a tornaram lei e sempre se lembrar de esquecê-los nas próximas eleições que vierem a disputar. Em particular, do autor da tramoia, Eunício Oliveira. E por falar no sujeito em questão: Vade retro e tchau, cabrão!

*Jornalista, poeta e escritor

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