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Direto ao assunto

O preferido e o preterido

Bolsonaro insiste em dizer que nomeará chefe da AGU para STF, 15 meses antes da aposentadoria do decano Celso de Mello, para mostrar a Toffoli que não deixará de cumprir o combinado

Por José Neumanne
Atualização:

 

Em almoço no sábado 31 de agosto no Quartel-General do Exército (vulgo Forte Apache), em Brasília, o presidente Jair Bolsonaro dispôs-se a conversar informalmente, sem direito a gravação, com jornalistas. E como sempre ocorre nessas ocasiões, sentiu-se à vontade para fazer revelações informais, mas que gostaria de ver publicadas. Foi o caso de um assunto remoto, que ele faz questão de tornar urgente: a nomeação do substituto do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello.

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Descontraído, o presidente comentou a eventual indicação de Sergio Moro para uma vaga no STF. Seu jeito foi dizer que "isso vai depender do dia a dia e de como o Senado avaliaria o ministro numa sabatina". Ora, qualquer um dos interlocutores sabia muito bem como interpretar essa saída. Afinal, o Senado não indica ministros para o Supremo. Quem o faz é o presidente da República. O indicado é submetido a uma sabatina no Senado para cumprir a praxe republicana em que essa Casa submete o candidato a um interrogatório no qual põe à prova uma das qualidades exigidas pela Constituição para o posto: o notório saber. Sabe-se, por exemplo, que nunca um indicado foi humilhado com a reprovação. Um ignorante absoluto, Dias Toffoli, nomeado por Lula, sob quem era advogado-geral da União, passou incólume pela prova. Mesmo sem conhecer pessoalmente todos os senadores nem o ministro da Justiça e da Segurança Pública, sinto-me inclinado a apostar que não há entre os senadores um só capaz de julgar o grau de conhecimento das leis e do Direito do ex-juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Alguém se habilita?

Neste momento, contudo, após ter passado 28 anos no mais baixo clero da Câmara dos Deputados, o ex-capitão sabe melhor que ninguém do desapreço que seu subordinado sofre da parte dos parlamentares. Muitos deles são suspeitos, acusados, condenados, alguns até presos, sem se saber ao certo quantos deles têm simplesmente medo de um dia virem a ser descobertos pela Operação Lava Jato. A afirmação do chefe do governo parte do pressuposto, ao qual todo interlocutor tende a aderir, de que não será fácil convencer o Senado a aprovar o herói popular que ousou desafiar a lei penal não escrita, mas a mais executada, de que prisões são locais para viverem pretos, pobres e prostitutas. A referência de Bolsonaro serve desde já para desobrigá-lo da certeza popular de que 1) Moro é o brasileiro mais apto a ocupar um lugar na mais alta Corte da Justiça e 2) Bolsonaro seria o único brasileiro a chegar à Presidência com o compromisso e, de certa forma, até a obrigação de indicar o magistrado paranaense para uma cadeira naquele seleto colegiado.

Fê-lo aos representantes de uma das instituições com que ele se vê forçado a conviver na República: a imprensa. Do alto do poder que mais gosta de exercer, o de impor a sua verdade como absoluta, embora nem sempre corresponda aos fatos, Sua Excelência proclamou: "Não me comprometi com o Moro no STF. Durante a campanha, o que eu prometi foi alguém do perfil do Moro". Quem ali ousaria discordar dele? Difícil encontrar quem o fizesse.

E foi então que o presidente aproveitou a oportunosa ensancha para reafirmar o que tem dito explicitamente e muitas vezes: que o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU) é "terrivelmente supremável". Qualquer interlocutor que alguma vez tenha aberto um dicionário na vida podia lembrar-lhe que "terrível" significa assustador. E "supremável" nem sequer existe como palavra registrada pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, editado pela Academia Brasileira de Letras e de cuja existência dificilmente ele terá conhecimento. Tendo nomeado para o Ministério da Educação um pretendente a rentista que chama o autor de O Processo de "Kafta", acepipe árabe, escreve "paralização", em vez de paralisação, e "assinte", querendo dizer acinte, além de inventar o verbo futurar-se, Jair decerto não se acanhará em imitar Antônio Rogério Magri. Este, como é de conhecimento geral da Nação, quando ministro do Trabalho e Previdência Social, se disse imexível e elevou sua amada cadela à condição de ser humano. Pouco importa, contudo, o gosto, tendo o chefe da Nação pouca vocação para dominar a língua materna, de inventar palavras como assina decretos. O que interessa aqui é tentar entender por que ele se pronuncia com tanta frequência sobre o substituto de Mello no STF, a se aposentar em novembro de 2020, ou seja, daqui a 15 meses.

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O agronegócio brasileiro está em cólicas por causa de sua aprovação explícita dos incendiários e derrubadores da floresta na Amazônia. O desemprego continua elevadíssimo e ele não está nem aí para os miseráveis que não têm um salário para pagar uma média com pão. Quem não tem advogado grã-fino para conseguir habeas corpus nos tribunais superiores apodrece ou é incendiado nas infectas prisões da pátria amada, para aparente regozijo presidencial. Mas ele está mesmo preocupado em convencer os incautos de que não indicará Moro, mas André Mendonça, para a vaga de Celso de Mello. Por que será, hein? Que atributos tem seu subordinado para seduzi-lo?

A paixão de presidentes por funcionários subalternos que guindaram à chefia na Advocacia-Geral da União tem raízes históricas. Foi lá que Fernando Henrique encontrou um indicado para a torre mais alta do Judiciário, Gilmar Mendes. E de lá Lula sacou um advogado reprovado duas vezes para a magistratura de primeira instância, José Antônio Dias Toffoli, hoje supremo dos supremos magistrados. Será um tipo de predestinação?

Jair nomeou André para o posto que este ora ocupa ainda durante o governo Temer. Surpreendeu quem sabia - e não parece ser um segredo guardado a sete chaves - que o escolhido tem fé petista. E que a confirmou ao bajular de forma abjeta a ascensão do ex-sindicalista a presidente da República, em texto de muita fé e pouco talento na Folha de Londrina. O servil servidor do baixo clero da AGU tornou-se desde então protegido e promovido pelo advogado que nunca teve um empregador que não fosse do PT, desde os tempos de bacharel, quando Toffoli ainda era garçom na Academia da Pizza, na Vila Madalena, e frequentador constante do diretório do PT de Pinheiros, na capital paulista. Quem mais, além do presidente do STF, poderia ser o padrinho dessa nomeação?

Na AGU André Mendonça, pastor presbiteriano, criacionista (descrente da evolução da espécie e desafeto juramentado de Darwin), descobriu que pelo menos uma verdade bíblica pode ser contestada com proveito: a de que não se serve a dois senhores. Sim, diria o pregador, deve-se servir a dois senhores desde que um sirva ao outro e vice-versa. Assim se deu bem, a ponto de ser apontado como "terrivelmente evangélico" pelo suserano do Poder Executivo e sombra servil e silenciosa do cacique do Poder Judiciário.

Como serviçal de Bolsonaro, não se importou em discordar da opinião pública e dos amantes do Estado de Direito ao apoiar o decreto infame do patrãozinho Toffoli, que decretou mordaça para cidadãos que ousassem discordar dos 11 membros do Supremo, seus parentes e aderentes. Ainda sob a tutela e concordância do chefe Jair, que calou quando aprovou em despacho o banquete insultuoso dos medalhões de lagosta e vinhos premiados cinco vezes, pagos pelo povo para gozo dos varões do Olimpo raso.

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Só se surpreendeu com essa liberalidade de Bolsonaro quanto ao servilismo de seu advogado-geral da União ao supremo supremo quem não percebeu a relação que há entre a blindagem absoluta decretada por este para o primogênito daquele no caso em que os abelhudos do Coaf bisbilhotaram a contabilidade do gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj. O Coaf virou bola de pebolim mudando de pouso que nem ave migrante. E o herói popular Moro passou a ser alvejado pelas setas venenosas disparadas pelo ex-capitão por ter ousado discordar pessoalmente de Toffoli sem tê-lo avisado previamente de que o faria. Então, decepou a cabeça de Roberto Leonel do Coaf, convenientemente guardado sob o manto de Roberto Campos Neto no Banco Central.

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Só quem não reza pela Bíblia de Edir Macedo e acredita em política nova como definição de virtude pode perceber a conexão que existe entre "supremável" e pregador presbiteriano. E qual a causa da súbita prioridade da substituição do decano do STF um ano e três meses antes da aposentadoria deste. O presidente pode até não se ter comprometido a indicar Moro para a cúpula suspeita do STF, como, aliás, o próprio ministro de seu governo sempre confirmará. Agora, como se faz naquelas palestras de autoajuda, levante o braço direito aquele que não tinha a certeza, por seguir a lógica e o discurso do candidato do PSL à Presidência, de que o escolhido seria Moro, o brasileiro mais comprometido com combate à corrupção nesta sórdida República.

  • Jornalista, poeta e escritor

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