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Direto ao assunto

Ministro do TCU diz que todas as instituições falharam em mensalão e petrolão

Para Bruno Dantas, do TCU, os escândalos de corrupção “só foram possíveis porque os sistemas de controle foram muito falhos

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Por José Neumanne
Atualização:

Bruno tomou posse no TCU em 2014 e, cinco anos depois, fala de sua experiência no posto: ""O Brasil não vai suportar ver a sociedade ser punida pela segunda vez." Foto: Acervo pessoal

O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas, primeiro a aprovar a decisão de bloquear os bens pessoais de Emílio e Marcelo Odebrecht, ao inaugurar a dissidência de uma decisão contrária do relator, reconheceu que todas as instituições encarregadas de evitar os recentes escândalos de corrupção, como mensalão e petrolão, falharam. O protagonista da série Nêumanne Entrevista desta semana neste Blog do Nêumanne explicou: os casos (que ele chamou de)"macrocorrupção, que nós verificamos, as macroirregularidades que verificamos só foram possíveis porque os sistemas de controle foram muito falhos". A justificativa para a decisão do colegiado, por 4 a 1, partiu de um pressuposto: "Se você salva a empresa e não tira o dono de dentro dela, na verdade você está premiando quem comandou o crime. Hoje a lei brasileira não prevê uma medida administrativa de obrigatoriedade de o acionista se desfazer das suas ações, da sua participação societária na empresa", Disse mais: "O Ministério Público (MP) poderia ter feito, lá em 2015 e 2016, quando fez os primeiros acordos de leniência, uma exigência explícita de que as famílias que controlam essas empresas saíssem. E aí, sim, você iria olhar para a empresa com olhos mais impessoais, sem esse gosto de fel, de salvar a empresa e estar salvando também o corrupto". E completou: "O Brasil não vai suportar ver a sociedade ser punida pela segunda vez. A primeira,quando foi roubada e a segunda, quando as empreiteiras derem um calote nos acordos de leniência e nos danos que eles precisam ressarcir ao erário. Então, a primeira coisa é ir no patrimônio dos acionistas, sócios, donos. Segunda coisa, acho que a AGU, o BNDES, a Caixa Econômica, o Banco do Brasil deveriam, a partir dessas delações que estão sendo feitas, ingressar com ações para desconstituir esses empréstimos".

Bruno explica a Joaquim Barbosa, assumindo então a presidência do STF, um processo a ser julgado. Foto: Acervo pessoal

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O ministro Bruno Dantas, do TCU, foi o mais jovem a chegar a quase todos os cargos que ocupou. Numa época em que os consultores legislativos (servidores de carreira do Senado que prestam assessoramento a todos os parlamentares, independentemente de partido ou ideologia) eram quase todos de idade superior a 50 anos e, por isso, apelidados de "cardeais do Senado", ele foi aprovado em concurso e tomou posse, em 2003, com 25 anos, o mais jovem da história da carreira, que já existia havia mais de 40 anos.

No Senado, auxiliou na elaboração de projetos importantes e auxiliou atividades de parlamentares de diversos partidos, como Antero Paes de Barros, na CPI do Banestado, José Jorge, na reforma do Judiciário, e Marco Maciel, na Comissão de Constituição e Justiça. Em 2007, com a saída do então consultor-geral, a associação dos consultores mobilizou-se para fazer uma eleição e indicar ao presidente do Senado um nome para a função. Houve apenas dois candidatos e Bruno Dantas venceu com 70% dos votos de seus pares, tornando-se o mais jovem consultor-geral da história do Senado, com 30 anos. A história repetiu-se quando foi eleito pelo plenário do Senado para mandatos no Conselho Nacional do Ministério Público (2009) e no Conselho Nacional de Justiça (2011), quando tinha 31 e 33 anos respectivamente. A chegada no Tribunal de Contas da União com 36 anos seguiu o mesmo script.

Mas quem vê os êxitos profissionais,acaba não descobrindo as imensas dificuldades que o jovem baiano enfrentou desde que se mudou para Brasília, em 1998. Filho de uma bancária e um pequeno comerciante, chegou à capital porque sua mãe (recém-divorciada) havia sido transferida a contragosto de Feira de Santana para Taguatinga. O início foi difícil, o salário da matriarca era muito baixo para custear as despesas da família. Foram morar numa sobreloja na Praça do Bicalho, em Taguatinga Norte.

No térreo funcionava um bar barulhento que só fechava às 2 da manhã, e era a única hora em que o universitário Bruno Dantas conseguia se concentrar nos estudos. Ia de ônibus para a Universidade Católica de Brasília em Taguatinga Sul, mas sempre sonhou em mudar de vida por concurso público. E conseguiu. Com poucos meses em Brasília, disputou e foi aprovado em concurso público para o Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Foi empossado com 20 anos. Trabalhava numa cidade-satélite distante chamada Samambaia, ia de ônibus para o trabalho e de lá pegava outro ônibus para a Universidade Católica, em Taguatinga Sul.

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A aprovação no concurso do Tribunal de Justiça fez o jovem Bruno Dantas despertar para seu próprio potencial. Ainda na metade do curso de Direito, começou a estudar para concursos públicos que exigiam curso superior. Tentou inúmeros. E foi aprovado em quase todos: delegado de Polícia Federal, Petrobrás, Caixa Econômica Federal, BR Distribuidora, Câmara dos Deputados e Senado.

A convivência com os "cardeais" (os consultores mais experientes) do Senado, fez despertar o interesse pela carreira acadêmica. Fez mestrado e doutorado na PUC-SP sem se afastar do trabalho. Depois fez três pós-doutorados, um na UERJ, outro na Cardozo School of Law, de Nova York, e o último no Instituto Max-Planck, de Luxemburgo. Escreveu ou coordenou mais de dez livros, publicou mais de uma centena de artigos científicos e profere palestras em todo o Brasil. Atualmente é professor de mestrado da FGV Direito-Rio e da Uninove, em SP.

Nêumanne entrevista Bruno Dantas

Bruno com Rodrigo Maia, Sérgio Guerra, Juarez de Freitas e Marianna Willemann, da comissão por ele presidida na Câmara para tratar de projetos para melhorar a gestão. Foto: Acervo pessoal

Nêumanne - Não tenho muita familiaridade com julgamentos do Tribunal de Contas da União (TCU). Por isso, não estranhe minha pergunta: é incomum nas decisões internas do tribunal reverter um voto vencido em início de uma dissidência que terminou vencendo por 4 a 1, uma goleada, como aconteceu no caso do bloqueio de bens dos empreiteiros Emílio e Marcelo Odebrecht?

Bruno Dantas - O processo decisório do TCU, embora tenha características que o aproximam dos tribunais do Poder Judiciário, tem algumas peculiaridades que precisam ser explicadas.

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Primeiro, diferentemente do STJ, do STF ou de outros tribunais, todas as decisões do TCU são colegiadas. Então, você nunca verá o mérito de uma questão ser decidido monocraticamente, quero dizer, isoladamente por um ministro no TCU. Até mesmo em situações urgentíssimas, quando o relator é autorizado a adotar uma cautelar, o regimento interno estabelece que a decisão seja submetida ao plenário para referendo ou para rejeição, na primeira sessão subsequente. Então, esse é um ponto muito interessante.

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O segundo ponto do nosso processo decisório que vale a pena explicar é que as decisões do TCU sempre são precedidas de opiniões de órgãos técnicos da casa. É a lei federal que estabelece que, para que um ministro apresente ao plenário uma proposta de deliberação, ele deve antes, obrigatoriamente, ouvir as instâncias técnicas da casa. E isso se dá de maneira fracionada, escalonada. Vai primeiro para um auditor, que faz uma análise técnica independente. Na imensa maioria dos casos os ministros nem sabem qual foi o auditor sorteado para fazer aquela análise técnica. Depois, o processo sobe para o diretor da área, ao qual aquele primeiro auditor está subordinado. O diretor irá também fazer uma segunda análise técnica independente. Pode concordar ou discordar. E depois sobe para o secretário, que é o chefe do diretor. E esse secretário também tem autonomia técnica para emitir sua opinião. Após essa tríplice análise, que obrigatoriamente deve ser documentada nos autos, o processo pode ir para o Ministério Público, e só depois chega ao relator. Isso significa que as decisões do TCU são necessariamente decisões que já chegam ao plenário com muita informação, pois todos os demais ministros têm acesso aos relatórios produzidos na instrução processual. Isso importa em que a esmagadora maioria das decisões do TCU é unânime, porque, depois de uma instrução como essa, para um ministro divergir do que o corpo técnico da casa (que é independente, todo concursado, não há cargos em comissão no corpo funcional de auditoria do TCU) serão precisos argumentos técnicos muito robustos. Então, as decisões são unânimes porque, de modo geral, os ministros acompanham a opinião dos auditores.

Neste caso em particular, da Odebrecht, na verdade analisávamos uma auditoria lá na Repar (refinaria do Paraná), o plenário já havia determinado alguns meses antes o bloqueio de R$ 1 bilhão identificado como superfaturamento, e o que aconteceu foi que a área técnica do TCU opinou pela manutenção do bloqueio de bens e o relator pretendia divergir dos auditores e desbloquear. Eu havia pedido vista no ano passado e o que percebi foi: com o pedido de recuperação judicial da Odebrecht, o quadro fático havia mudado substancialmente. Então, eu entendi que não só não era motivo de  divergir do relator, mas, dadas algumas características desse processo (após um ano o tribunal só conseguiu bloquear sete imóveis de baixíssimo valor que não chegavam nem mesmo a R$ 5 milhões), eu entendi que estava caracterizada, primeiro, uma situação de quase insolvência da Odebrecht e, segundo, um quadro de esvaziamento patrimonial que caracteriza aquilo que o Código Civil chama de hipótese de desconsideração da personalidade jurídica. O que significa isso? Significa ignorar que a pessoa jurídica e seus acionistas controladores são pessoas distintas e subir para o patrimônio desses acionistas controladores para que eles garantam, com seu patrimônio pessoal, aquela dívida que é da empresa. Por causa dessa questão, que eu coloquei, o plenário debateu e todos os demais ministros, afora o relator, entenderam que meu voto deveria prevalecer. Mas veja que a minha proposta já era mais afinada com a dos auditores do que com a do relator.

Para ver Bruno em TCU responde a questões clique aqui

N - O senhor não acha que a inédita decisão do TCU de poupar a empresa Odebrecht e congelar os bens dos seus sócios, a que me refiro, deveria tornar-se um padrão  daqui para a frente?

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BD - Eu entendo que nós precisamos encontrar, claro, dentro da lei, uma forma de se fazer justiça ao que aconteceu no Brasil. Nós sabemos que empresas não têm alma, não têm coração, não têm braços. As empresas são aquilo que os seus controladores querem que elas sejam. E no caso das empreiteiras do Brasil, são todas empresas de capital fechado, empresas, como se chama no jargão do mercado, "de dono"; não são empresas que têm ações comercializadas na bolsa, não são empresas que têm sócios minoritários ali exercendo os seus poderes de fiscalização sobre os controladores, etc. Então, o que eu entendo no caso dessas empresas de capital fechado é que beneficiar a empresa, em última análise, significa premiar aquele controlador que perpetrou o crime. É isso que dá uma sensação amarga de injustiça.

O ideal é que se avance sobre o patrimônio dos acionistas e se preservem as empresas. Mas de nada vai adiantar tentar fazer isso se for feito ao arrepio da lei. E a lei só permitiu que nós fizéssemos o que foi feito na Odebrecht porque estava caracterizada uma situação de abuso da personalidade jurídica. Ou seja, estava provado que os acionistas controladores abusaram dos seus poderes de gestão da empresa para se beneficiarem. Isso está provado no caso das empresas da Lavo Jato? Qual é o problema? E aqui eu tenho refletido muito para achar uma solução. O problema é que as provas de que os acionistas abusaram da personalidade jurídica foram produzidas por esses mesmos acionistas, no âmbito das delações premiadas e dos acordos de leniência. E há uma regra de Direito que diz que as provas apresentadas pelos delatores não podem ser usadas contra eles próprios.

Mas o certo é que, diante desse quadro, o que se pode fazer, e é isso que tenho procurado fazer, é buscar outras provas, que não as produzidas pelos delatores, que evidenciem as outras hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica. E aqui entra uma que usamos no caso da Odebrecht, que é a de esvaziamento patrimonial da pessoa jurídica, ou seja, a empresa jurídica fica pobre e o dono fica rico. Essa é uma hipótese que a lei estabelece e permite que se desconsidere a personalidade jurídica e se invada o patrimônio dos donos.

Bruno, aos 2 anos, brincando de imitar o avô, ávido leitor de jornais, na casa onde passou infância e adolescência em Feira de Santana, no sertão da Bahia. Foto: Acervo pessoal

N - Li nos jornais declaração sua sobre a necessidade de aprimorar o controle interno das instituições e reestatizar o que foi capturado por grupos políticos e empresariais. Qual é a sua proposta, ministro?

BD - Você faz uma pergunta muito boa, Nêumane. Porque, realmente, quem vive na vida pública sabe que é muito fácil jogar pedras, sabe que é muito fácil apontar defeitos e é muito difícil indicar soluções. E que bom que você me dá a chance de dizer o que acho que pode melhorar nessa forma como a administração pública é controlada. Eu passei a refletir sobre esse assunto por provocação do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, com quem tenho um diálogo muito próximo, e ele me dizia exatamente isso: "Olha, ministro Bruno, tivemos um grande avanço por conta das revelações da Lava Jato. Agora é hora de transformar esse sentimento de revolta da população em ganhos institucionais". Ou seja, a Lava Jato foi importante, mas é importante que se criem mecanismos institucionais para que novas Lava Jatos não sejam necessárias. Porque o tamanho do escândalo envolvido revela que todas as instituições falharam. Em maior ou menor medida, todas falharam. E foi exatamente por conta dessa conversa que comecei a pensar como é que poderíamos melhorar os controles da administração para evitar que desvios de tal monta se repitam. Porque, claro, a pequena corrupção, aquele guarda que recebe propina para liberar o motorista da blitz ou o fiscal de renda que recebe uma propina para não autuar um lojista, essa daí você só resolve com polícia. Não dá para criar uma grande regra para evitar que isso aconteça. Claro, é muito de cultura, e também polícia, é preciso repressão para esse tipo de caso. Agora, a macrocorrupção que nós verificamos, as macroirregularidades que verificamos só foram possíveis porque os sistemas de controle foram muito falhos. E o que nós dizíamos? Um dos maiores problemas é a captura política de determinadas posições do Estado. E eu dou alguns exemplos. O setor de uma autarquia, um ministério, uma empresa pública que faz aquisições. Dá para aceitar que o sujeito responsável pelas compras seja vinculado ao ministro? Ora, se as compras que ele vai fazer não são para o ministro, mas para o ministério, que sentido faz que esse cargo seja de livre nomeação?  Então, foi fazendo esse tipo de pergunta que identificamos fundamentalmente dois setores que precisariam ser enormemente reforçados. Primeiro, o setor de controle interno dos órgãos públicos. E o segundo, setor de controle jurídico dos órgãos públicos.

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Primeiro, porque a consultoria jurídica é que dá a opinião legal sobre se tal ato ou tal contrato pode ou não ser assinado daquela maneira que o agente político (que tem legitimidade para tomar decisões) quer. Só que ele tem de tomar decisões políticas que sejam aderentes à lei. E é exatamente o órgão de consultoria jurídica que vai dizer isso. Ora, se você permite que um ministro leve para o ministério um consultor jurídico para chamar de seu, é óbvio que esse consultor, até para manter o emprego, poderá dizer que preto é branco e que cinza é roxo, porque o seu chefe assim deseja. Nós sabemos que muitas vezes a lei comporta interpretações elásticas, mas, apesar de haver alguma flexibilidade, tem de ser aquela interpretação que atende ao interesse público, e não ao interesse particular daquele agente político de plantão. Então, essa foi a primeira posição.

Segunda, o controle interno. O consultor jurídico atua antes de maneira preventiva, opina se um ato pode ser praticado daquela maneira. O controle interno,não. Ele atua de maneira mais repressiva, depois que o ato é feito ele faz uma análise para dizer que não poderia ter sido feito daquela forma. E o que eu acho, considerando que essas duas posições são cruciais em qualquer órgão, é que uma maneira inteligente de melhorar os controles (claro que isso não resolverá 100%) é exigir que essas duas posições em todos os órgãos públicos sejam de ocupação exclusiva de servidores concursados. E você vai me perguntar: é o concurso que garante a honestidade? Não, não é concurso que garante a honestidade. Mas o concurso já traz um filtro a mais para impedir que aquele agente político traga de fora da administração alguém que tenha ânimo e disposição para praticar irregularidades. Mais do que isso, nós propusemos que esses cargos sejam providos por pessoas que tenham mandato, para evitar que o chefe, o ministro de Estado, o presidente da estatal, quando se deparar com um parecer contrário, simplesmente demita aquele servidor e mande nomear outro servidor concursado que esteja disposto a assinar aquela interpretação que o chefe gostaria. Então, entendemos que essas mudanças podem ser cruciais para melhorar o controle da gestão pública.

Para ver Bruno no CB.Poder na TV Brasília clique aqui

N - Essa sua opinião tem algo que ver com o anteprojeto de lei que o senhor propõe a respeito de casos similares ao da Odebrecht?

BD - Tem, sim. Na realidade, a pedido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, a comissão de juristas que ele designou e da qual fui presidente elaborou um conjunto de propostas, e uma das propostas era essa que reforçava o controle interno e as procuradorias dos órgãos. Uma segunda proposta, essa, sim, tem mais relação com o problema específico da Odebrecht e outras empresas, que é a questão de você preservar empresas sem premiar o dono. Afinal, se você salva a empresa e não tira o dono de dentro dela, na verdade você está premiando quem comandou o crime. Hoje a lei brasileira não prevê uma medida administrativa de obrigatoriedade de o acionista se desfazer das suas ações, da sua participação societária na empresa. E uma das propostas que nós enviamos e já está em tramitação na Câmara dos Deputados diz que os órgãos que têm o poder de declarar a inidoneidade (e essa é uma pena de morte para as empresas que atuam em ramos cuja maioria dos contratos é com o governo) podem, a depender das circunstâncias do caso concreto, substituir a pena de declaração de inidoneidade pela determinação de alienação de controle da empresa. Ou seja, você substitui a pena de morte pela pena de banimento, para usar uma linguagem de mais fácil compreensão.

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Claro que, e aí vai uma crítica que tenho feito há alguns anos, eu entendo que, quando o Ministério Público começou a fazer os primeiros acordos de leniência, foram colocadas várias cláusulas que não têm previsão legal. Por quê? Porque, dentro da liberdade que existe para se estabelecerem cláusulas de acordo, o Ministério Público entendeu que podia propor regime de cumprimento de pena, que não está exatamente previsto na lei, algumas obrigações que não estão previstas na lei, e eu não vejo problema nenhum em fazer isso. A única pergunta que faço é: ora, por que não colocaram nos benditos acordos de leniência, assinados em Curitiba, uma cláusula que obrigasse esses acionistas controladores a sair da empresa? Porque se isso acontece, nenhum dos problemas que nós estamos enfrentando hoje estaria sendo discutido. O Ministério Público poderia ter feito, lá em 2015 e 2016, quando fez os primeiros acordos de leniência, uma exigência explícita de que as famílias que controlam essas empresas saíssem. E aí, sim, você iria olhar para a empresa com olhos mais impessoais, sem esse gosto de fel, de salvar a empresa e estar salvando também o corrupto.

 

Bruno, então conselheiro do CNJ, ao lado de Gilmar Mendes, na divulgação dos resultados das execuções das metas judiciais. Foto: Acervo pessoal

N -  Ministro, o empréstimo sem garantia do BNDES para a Odebrecht foi mediante propina, confirmada pelo petista Antônio Palocci.  Com isso a Odebrecht comprou ativos que foram dados em garantia aos bancos privados. Essa  garantia não é ilícita? Pode o BNDES não receber o seu dinheiro e os bancos privados ficarem com o dinheiro do BNDES, do FAT, que é dos trabalhadores?

Nesse caso, nada impede que a diretoria do BNDES ajuíze ações específicas para desconstituir esses atos. Eu penso que isso seria possível, mas mediante uma ação própria, e aí, sim, o juiz da ação que vai apreciar isso terá de comunicar ao juiz da vara de recuperação judicial a existência da discussão, devendo ficar reservado um determinado valor que, como se vê nos autos, foi recebido pela empresa a partir de empréstimos fraudulentos. Então isso pode ser feito, mas numa ação judicial específica.

Para ver palestra de Bruno para policiais federais clique aqui

N - O dinheiro do trabalhador, tomado do BNDES, está sendo  transferido para os bancos privados nessa recuperação judicial, decidida em prazo recorde (um dia) pelo juiz João Rodrigues de Oliveira Filho, titular da 1.ª Vara de Falências de São Paulo, da Odebrecht. E isso pode, ministro? 

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Essa questão sobre a recuperação judicial é difícil porque não cabe ao TCU rever atos de juízes. Existe toda uma cadeia de recursos das decisões judicias, mas essa cadeia não passa pelo TCU. Ela passa pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e até pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Com Sarney, presidente do Senado, e Fux, no CNJ, na instalação da Comissão de Juristas que redigiu o anteprojeto do Código de Processo Civil, em 2009. Foto: Acervo pessoal

N - A ex-corrupteira transnacional Odebrecht, que não tem mais condições de continuar na atividade, está fazendo uma reoganização interna, tentando virar a maior caloteira do País, e só não está mudando o alvo dela, que é o Estado brasileiro. É possível fazer algo para evitar isso, em nome do interesse coletivo? 

BD - Acho que nesta conversa falamos sobre algumas possibilidades. E acho que a principal delas é ir atrás do patrimônio dos acionistas. Acho que o Brasil não vai suportar ver a sociedade ser punida pela segunda vez. A primeira quando foi roubada e a segunda, quando as empreiteiras derem um calote nos acordos de leniência e nos danos que precisam ressarcir ao erário. Então, a primeira coisa é ir no patrimônio dos acionistas, sócios, donos. Segunda coisa: acho que a AGU, o BNDES, a Caixa Econômica, o Banco do Brasil deveriam, a partir dessas delações que estão sendo feitas, ingressar com ações para desconstituir esses empréstimos.

Porque, uma vez desconstituídos esses empréstimos, os bancos teriam prioridade no recebimento do seu dinheiro. Note: isso não seria propriamente um crédito do banco com a empresa. Mas simplesmente devolver o dinheiro, já que o empréstimo foi fraudulento. Eu admito que isso seja difícil, porque, como falamos, é preciso ver a cadeia causal para identificar os bens que foram adquiridos com o financiamento público a juros subsidiados.

Para ver Bruno falando da ação conjunta TCU Lava Jato clique aqui

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N - O senhor foi um crítico dos acordos de leniência, declarando publicamente que aceitar que as empresas que subornaram agentes públicos para fraudar licitações, mas depois voltaram a cumprir a lei e praticar preços de mercado, é o mesmo que aprovar uma anistia, sinalizando para a sociedade que vale a pena cometer crimes. O senhor vê alguma solução para esse procedimento imoral?

BD - Eu costumo dizer que para explicar esse fenômeno dos acordos de leniência de um modo que a população possa entender é preciso que se diga que na vida em sociedade existem dois grupos de empresários: uma imensa maioria que se sujeita à lei, aceita as regras, cumpre rigorosamente todos os compromissos que a carga tributária nacional impõe, que o custo Brasil impõe, que as regras do Ibama impõem, enfim, que os diversos órgãos públicos impõem de dificuldade à vida dos empresários. Esses são a maioria, a maioria dos cidadãos de bem, que suportam as obrigações da lei, pessoas de caráter que são, e se sujeitam a essas regras. Existe um segundo grupo, menor, mas representativo, que para tentar buscar uma vantagem competitiva burla de alguma forma a lei, cometendo irregularidades e crimes. E aí, dentro desse segundo grupo, nós temos dois subgrupos: o primeiro subgrupo é o de pessoas desonestas que infringiram as leis e, flagradas em crime, correm para as autoridades e dizem que se arrependeram, que não desejam mais continuar nas ilicitudes, que vão estabelecer medidas para que no futuro isso não se repita mais, vão devolver o que foi desviado, etc; o segundo subgrupo é o daqueles que, mesmo flagrados não demonstram arrependimento, não querem assumir compromissos de integridade na sua atividade empresarial, etc. Perceba: é claro que nesse segundo grupo, das pessoas que cometeram irregularidades, aquelas que se arrependeram merecem ter uma vantagem comparativa em relação àquelas pessoas que não se arrependeram e, se puderem, vão infringir a lei de novo. Agora, você não pode tratar uma pessoa que se arrependeu com a mesma leveza com que trata aquela que jamais delinquiu, que é a que está lá no primeiro grupo e suporta o custo Brasil. Porque, se você der ao delinquente que se arrependeu as mesmas possibilidades que dá a quem jamais cometeu infração alguma, pergunto: qual é a vantagem de ser honesto? Será que o Estado pode passar essa mensagem para a sociedade? A resposta deve ser um sonoro e eloquente não!

É óbvio que quando se está falando de honestidade não se fala apenas de incentivo que o Estado passa. Claro que isso tem muito mais que ver com a formação familiar, as convicções de vida, o modo de enxergar o mundo de cada um. Se é certo que há fatores externos que influenciam, certamente o da educação familiar, a disposição íntima de cada indivíduo fala alto. Mas do ponto de vista do Estado, de construção de uma sociedade mais íntegra e sadia, é claro que é preciso que haja os estímulos adequados. E a minha crítica para a forma como se fizeram os acordos de leniência no Brasil é que, primeiro, se antes havia o clube do cartel das empreiteiras, agora se tem o clube dos acordos de leniência. Embora a lei diga, com todas as letras, que só a primeira empresa que delatou as demais poderia ter o benefício, essa regra tem sido solenemente ignorada e temos visto aí um clube para os acordos. Todas as empresas estão fazendo os acordos. O próprio Ministério Público infringiu a lei nesse aspecto. Quer dizer, as empresas, daqui a pouco - e talvez até isso já esteja ocorrendo -, estarão combinando entre si o que cada uma confessa, para que todas tenham o benefício.

Agora, o segundo ponto, que acho que é o mais grave de todos, é que esses acordos de leniência não se fundamentaram em análise técnicas consistentes sobre o tamanho do prejuízo que as empresas causaram ao Estado. É algo que agride o senso de justiça e equidade de qualquer cidadão ver uma empresa que desviou dezenas de bilhões de reais pagar R$ 400 milhões e estar livre. Eu acho que as multas que foram fixadas pela Lava Jato são muito baixas, considerando o tamanho do prejuízo que foi causado. Segundo, faltou uma cláusula que previsse a exclusão imediata daquele acionista controlador. Se você pretende trazer para o Brasil uma ferramenta, um instrumento jurídico que funciona bem nos Estados Unidos, você tem de trazê-lo por completo. Essa macaquice de importar pela metade determinados institutos acaba gerando essas perplexidades. Se você for ver o manual dos acordos de leniência dos Estados Unidos, uma das primeiras cláusulas é impedir o empresário que praticou crimes de continuar na empresa, e pior, até de voltar ao setor por cinco anos, dez anos. Se a especialidade do empresário é construção civil, você o proíbe de atuar na construção civil. Vai trabalhar com qualquer outra coisa. No Brasil, a gente não só não proíbe o sujeito de continuar no mesmo setor, como permitiu que ele continuasse na mesma empresa. Isso é gravíssimo. É um escândalo, e eu lamento muito que o Ministério Público e a Controladoria-Geral da União (CGU) tenham compactuado com isso. Como se trata de acordo, bastaria que eles colocassem isso como cláusulas número um, e ponto final. Mas, infelizmente, não fizeram. Nem aproximaram o valor das multas do valor real do prejuízo, como também não criaram uma forma de obrigar os verdadeiros responsáveis pela corrupção, que são os donos da empresa, a não continuar. Isso deveria ter sido feito, e essa é a minha crítica.

Bruno com o pai Arnaldo José do Nascimento, a mãe, Isis Dantas do Nascimento, e o irmão Hugo Dantas Silva do Nascimento em sua posse no TCU, em 2014. Foto: Acervo pessoal

N - A recuperação judicial, que prejudica o interesse do trabalhador e beneficia o corruptor, também não é um recado para a sociedade de que o crime compensa?

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BD - Você faz uma pergunta aqui que vai no centro da ferida. A recuperação judicial, que está prevista na lei e deve servir para que uma empresa honesta com dificuldades financeiras se possa reerguer, esse instrumento, infelizmente, pode também, em determinadas circunstâncias, funcionar como estratégia empresarial para dar um calote no Estado. Eu me recordo de que, três anos atrás, quando começaram a falar desses acordos de leniência, fui a um evento no Instituto Fernando Henrique e naquela oportunidade falei que daqui a pouco nós teremos de falar em Refis para acordos de leniência. Já chegou essa data. Porque,se as empresas aceitaram pagar R$ 5 bilhões de multa no acordo de leniência e elas pedem recuperação judicial, isso aí é um Refis dos acordos de leniência. E isso é muito grave. Agora, eu não vejo muita solução para isso. A verdade é que quando uma empresa pratica corrupção no nível que as empreiteiras brasileiras praticaram, na verdade, elas assumem o risco de quebrar, porque é muito difícil qualquer uma delas escapar. Veja que quase todas elas estão em recuperação judicial. A única que não está é a Camargo Corrêa, porque foi a primeira que foi lá, denunciou e fez os primeiros acordos. Todas as outras enfrentam dificuldades financeiras. Todas ou quebraram, ou estão em recuperação judicial.

Para ver entrevista de Simone Souto com Bruno no CB.Poder, TV Brasília, clique aqui

N - Por que o senhor tomou a iniciativa de cobrar do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) explicações sobre uma eventual devassa na vida contábil do advogado americano Glenn Greenwald, que revela a conta-gotas supostas mensagens entre o ministro da Justiça, Sergio Moro, e o coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol?

BD - Embora.eu tenha limitações para responder sobre esse caso, porque ele ainda se encontra em apreciação pelo TCU e não existe decisão de mérito, o quete posso dizer é que não não é correto afirmar que eu tomei a iniciativa de cobrar do Coaf. Na verdade, eu fui provocado - eu sou o relator das contas do Coaf e do Ministério da Economia - e recebi representação de um subprocurador-geral do Ministério Público na qual alega fatos que ele considera gravíssimos, pedindo inclusive uma cautelar de suspensão imediata de qualquer investigação contra o jornalista do site Intercept. O que eu fiz, por prudência? Requisitei informações ao ministro da Economia e ao presidente do Coaf para que o TCU possa entender melhor o que está ocorrendo e para que se possa detectar se o Ministério Público tem razão em sua representação. Recebi essas informações, encaminhei para análise técnica dos auditores da casa e receberei um parecer. Esse caso está sendo tratado rigorosamente como todos os outros que recebemos, e são muitos. É algo absolutamente normal recebermos representações em que se alega desvio de finalidade, ilegalidades. Isso tem o seu fluxo natural.

"Se você salva a empresa e não tira o dono de dentro dela, na verdade você está premiando quem comandou o crime", diz Bruno. Foto: Acervo pessoal

 

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