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Direto ao assunto

E se Juracy e Jair estiverem certos?

Seis redes de emissoras da TV comercial do EUA fizeram bem ao interromper fala de Trump na Casa Branca acusando eleição que perdia de ter sido “roubada” sem se referir a fato nenhum?

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Por José Neumanne
Atualização:

 

Na sexta-feira, 6 de novembro de 2020, correspondentes de meios de comunicação e seus públicos foram mantidos em suspense à espera de um pronunciamento do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cuja derrota no pleito de terça-feira, 3, parecia a cada segundo mais próxima de ser anunciada. O republicano assomou ao púlpito do qual faz seus pronunciamentos e respondeu a perguntas em entrevistas coletivas, na sala de imprensa da Casa Branca, dando início a um exaustivo e cansativo destampatório, acusando o sistema eleitoral da democracia fundada em 1776 de ter sido fraudado em prejuízo de suas pretensões à reeleição para o cargo político mais importante do mundo. Perdeu tempo quem esperou que ao longo de uma teoria conspiratória surrealista -- incluindo o autor destas linhas -- surgisse alguma bala de prata, um argumento fatal que desmentisse o otimismo dos adversários. Em vão.

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Espectadores de seis redes de televisão comercial em seu país, porém, foram poupados ou não puderam seguir até o fim aquela narrativa absurda, mais apropriada na obra teatral do surrealista romeno Eugène Ionesco. Elas tomaram uma atitude radical, inesperada e arriscada de suspender a transmissão da fábula autoindulgente do potentado vencido. Não era esperado, nem seria comum, que canais de televisão tivessem o topete de suspender uma transmissão ao vivo no momento em que era enunciado o primeiro de episódios sem nomes, endereços e evidências da fala oficial à qual o orador tem o privilégio ao menos até 20 de janeiro de 2021. Todos deram como único motivo o fato de que o principal mandatário da mais importante democracia mundial simplesmente não aprendeu a perder. Esse é, pelo menos na convicção dos executivos dos canais e dos noticiários, motivo suficiente para negar a seus telespectadores o rosário que tem repetido o ocupante do Salão Oval da Casa Branca desde que percebeu que sairia do jogo assim que os votos fossem conhecidos.

A decisão desses profissionais foi, além de inédita, ousada. Pois chegava de forma muito arriscada à margem de um dos direitos mais elementares da democracia instaurada naquele país há 244 anos na convenção que fundou os Estados Unidos da América, em Filadélfia, na Pensilvânia. A direita armamentista mundial, que tem no republicano no poder em Washington seu ícone, agarrou-se, desde então, a alguns conceitos que nunca defendeu, e agora com ardor mais do que inusitado. Ou seja, o máximo palavrão com que nenhum liberal sequer suporta conviver: a censura à expressão e opinião. Estabeleceu-se incontinenti o maior conflito na história da democracia contemporânea: entre liberdade e verdade, seus princípios basilares, nem sempre coincidentes.

A essa dicotomia acrescente-se, nestes tempos de libertinagem das redes sociais na cibernética, o conceito elástico e amoral da pós-verdade: a primeira condição para uma argumentação civilizada dos limites da liberdade que não aceita o direito de mentir, deixando de fora o cinismo. É possível até negar a concessionários de serviços de interesse público como emissoras de televisão o poder de cortar, sem nenhuma delegação popular,a transmissão que agora, quando parece definida a apuração dos votos dando vitória ao oponente, conta com a adesão de 70 milhões de eleitores norte-americanos que sufragaram o presidente. As redes sociais, que tateiam em busca de um ponto intermediário, têm alertado nos EUA que as declarações de Trump são, no mínimo, duvidosas. A decisão das emissoras ­- que, particularmente, não confundo com censura -- poderá ser submetida à Justiça por qualquer cidadão que se sinta prejudicado por ela.

"A democracia às vezes é confusa, então às vezes requer um pouco de paciência", disse Joe Biden em Wilmington, Delaware, onde vive, quando ainda não tinha certeza da vitória. Naquele momento, ainda era noticiada certa confusão na eleição presidencial, com manifestantes dos dois lados nas ruas e ações judiciais pedindo a paralisação da contagem. Convém esclarecer que a democracia dos pais fundadores, que sempre tentamos copiar, mas nunca conseguimos, é genuína e continua hígida e a salvo de eventuais tentativas de prepotência, de um lado ou de outro.

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Seja qual for o resultado a que se chegue sobre essa confusão, fica patente que Donald Trump tem usado o fato de morar na Casa Branca para usá-la como palanque e seu discurso se configura como absurdo por denunciar fraudes sem provas, e apenas em Estados onde perdeu para Joe Biden. Ou onde perdeu terreno no final da apuração em progressão.

É justo esclarecer que, por mais confusos resultados pareça permitir, e apesar de o sistema eleitoral norte-americano não dispor de Justiça Eleitoral nacional, mas estadual, é constrangedor ver o presidente, no exercício de suas funções, questionar a lisura de apurações eleitorais quatro anos após ter vencido numa. É um mau exemplo, vindo de um país que tem a pretensão de servir de modelo democrático para o mundo. Essa atitude representa um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral no futuro, pelas incertezas que desperta, embora não chegue a ameaçar a democracia nem a credibilidade do país no planeta. Como denotam manifestações de aplauso de vários estadistas, incluídos aliados do vencido.

A interrupção da fala de Trump é um momento histórico na ação dos modernos meios de comunicação. Se Juracy Magalhães, autor da sentença "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil", e Jair Bolsonaro, que adota aquele país como guia universal dos bons costumes cívicos, estiverem certos, seria talvez provável imitá-los por aqui. Ou não?

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