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Direto ao assunto

Discurso ideológico do governo sobre Amazônia prejudica nosso agronegócio, diz ex-ministro

Preocupa a Ricupero, que chefiou pastas da Fazenda e Meio Ambiente, boicote a nossos produtos por mercados ricos, em especial europeus

Por José Neumanne
Atualização:

Segundo Ricupero,, eventuais avanços do Brasil demandarão no mínimo 75 anos, em parte por causa do atraso na educação. Foto: Iara Morelli/Estadão

Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda no governo Itamar, adverte que "pior até do que eventuais sanções comerciais de governos será o boicote espontâneo dos consumidores europeus, extremamente sensíveis às questões ambientais, que não comprarão produtos brasileiros se tiverem conhecimento da origem. A prova de que não se trata de fantasias são as declarações do ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi, o maior exportador individual de algodão e o segundo de soja, que já está sentindo dificuldades em seus negócios. No mesmo sentido vão os pronunciamentos do presidente da Associação Brasileira do Agronegócio". Protagonista da série Nêumanne Entrevista desta semana, o ex-embaixador do Brasil em Washington também discordou da escolha do deputado Eduardo Bolsonaro para o cargo mais importante do Itamaraty no exterior, por motivos que garante nada terem que ver com corporativismo diplomático. "O posto de embaixador deve ter institucionalidade, não pode servir para representar uma pessoa, uma família. Outro aspecto é a imparcialidade para julgar os assuntos. O pior defeito de um diplomata é se identificar com o governo estrangeiro e passar a defender os interesses desse país. É o que fez Eduardo Bolsonaro ao tomar partido público pela reeleição de Trump, ao declarar à Fox News que apoiava a construção do muro na fronteira com o México porque muitos dos imigrantes eram criminosos, ao afirmar que sentia vergonha pelos brasileiros imigrantes ilegais, gente honrada e trabalhadeira que emigrou por não ter encontrado oportunidades no Brasil.

Nesse sentido, o embaixador deve gozar de acesso aberto às autoridades do governo estrangeiro, mas não ser demasiado próximo, porque a proximidade excessiva, a familiaridade, facilita que ele seja explorado como instrumento de interesses do país estrangeiro. Sendo familiar do presidente, o perigo é que, se amanhã, os americanos quiserem que o Brasil participe de alguma operação contra um vizinho, a Venezuela, por exemplo, nem o Itamaraty, nem o Congresso, nem a sociedade ficarão sabendo até que seja tarde demais", pondera Ricupero.

 

Ricupero no lançamento do livro Da Belíndia ao Real, com ensaios em homenagem a Edmar Bacha, um dos responsáveis pelo sucesso do Plano Real. Foto: Iara Morselli/Estadão

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Nascido em São Paulo, em 1.º de março de 1937, Rubens Ricúpero foi diplomata de carreira e se aposentou após ocupar a chefia das Embaixadas do Brasil em Genebra, Washington e Roma. Exerceu também o cargo de ministro do Meio Ambiente e da Amazônia, bem como o de ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), cabendo-lhe nesta última função lançar, em julho de 1994, a nova moeda brasileira, o real. Entre 1995 e 2004, por eleição da Assembleia-Geral das Nações Unidas, dirigiu como secretário-geral a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), em Genebra. Atualmente é diretor da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo. Foi ainda professor de História das Relações Diplomáticas do Brasil no Instituto Rio Branco e de Teoria das Relações Internacionais na Universidade de Brasília. É autor de vários livros e ensaios sobre história diplomática, além de obras sobre relações internacionais, desenvolvimento econômico e comércio mundial. Seu último livro é A Diplomacia na Construção do Brasil, de 2017, uma história das relações internacionais brasileiras desde a época colonial até o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016.

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Ricupero com Mailson da Nóbrega e Bolívar Lamounier no lançamento do livro de ensaios sobre Edmar Bacha na Livraria Cultura, em São Paulo. Foto: Iara Morselli/Estadão

Nêumanne entrevista Rubens Ricupero

N - De todas as questões ideológicas levantadas sobre o discurso do presidente da República, a mais preocupante de todas diz respeito a uma possível conexão entre o agronegócio e o ambiente. O agronegócio é, sem dúvida, a galinha dos ovos de ouro de uma economia que se aproxima perigosamente da miserabilidade. O senhor acha que há, de fato, um risco grave de o Brasil perder o lugar conquistado no comércio internacional de produtos agrícolas por causa das grosserias de Jair Bolsonaro ou isso é apenas estratégia marqueteira dos ecochatos?

Rubens Ricupero - Até recentemente, era um risco, uma hipótese, agora se tornou realidade. Após as declarações de Macron, do primeiro-ministro da Irlanda, do ministro do Exterior da Finlândia, país que exerce a presidência de turno da União Europeia, pedindo boicote urgente à carne brasileira, de Danilo Tusk, ex-presidente da União Europeia, no sentido de que o Acordo Mercosul-União Europeia é inconcebível enquanto arder a floresta, já não pode haver dúvidas de que os danos comerciais deixaram de ser uma hipóteses para se converterem em fatos. A meu ver, pior até do que eventuais sanções comerciais de governos será o boicote espontâneo dos consumidores europeus, extremamente sensíveis às questões ambientais, que não comprarão produtos brasileiros se tiverem conhecimento da origem. A prova de que não se trata de fantasias são as declarações do ex-ministro da Agricultura, Blairo Maggi, o maior exportador individual de algodão e o segundo de soja, que já está sentindo dificuldades em seus negócios. No mesmo sentido vão os pronunciamentos do presidente da Associação Brasileira do Agronegócio.

Para ver Ricupero no Roda Viva da TV Cultura em 2016 clique aqui

N - Se a memória não me falhar completamente nesta idade provecta, lembro-me de que nos conhecemos durante a gestão de Azeredo da Silveira no Ministério das Relações Exteriores, que contrariou de certa forma a visão primária de que o regime militar brasileiro era mero caudatário dos interesses americanos naqueles estertores da guerra fria. Corrija-me, por favor, se eu estiver enganado. Que consequências o senhor acha que advirão da política atual de alinhamento absoluto do Brasil de Jair Bolsonaro aos Estados Unidos de Donald Trump?

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R - Sua memória está correta, assim como correto é seu juízo sobre a qualidade de inovação e independência da política exterior de Geisel/Silveira. As consequências do alinhamento subserviente não aos EUA (ao menos não de Obama), mas ao governo fora de padrão de Trump, já se fazem sentir em diversos episódios concretos. É preciso dizer que, se todo alinhamento automático a um governo estrangeiro é uma insensatez e uma indignidade, no caso do alinhamento a um presidente para o qual o único princípio é "America first", isto é, meu país acima de tudo, além de indigno, o alinhamento é igualmente estúpido. Os anteriores governos americanos poderiam ser hipócritas quando proclamavam que desejavam propagar a democracia, os direitos humanos, a liberdade. Já no caso de Trump, diga-se em seu favor que ele não é hipócrita: diz claramente que só está empenhado em buscar o interesse americano, o que, para um megalomaníaco como ele, se confunde com o próprio interesse pessoal. Aliás, ele costuma dizer que os outros países deveriam fazer como ele e buscar seus próprios interesses. Bolsonaro, portanto, está aderindo não aos ideais dos EUA, mas aos interesses de Trump e do país dele.

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A consequência mais grave disso é que o Brasil passa a "comprar", a aderir à agenda estratégica nacional dos EUA de Trump, que nada tem que ver com a brasileira. A agenda americana dá prioridade a conter a ascensão econômica e estratégica da China, o principal parceiro comercial do Brasil; a antagonizar a Rússia, nosso associado no Brics; a hostilizar o Irã, um dos principais compradores de proteína animal e de milho do Brasil; a favorecer Israel em detrimento dos palestinos e dos árabes, estes últimos grandes mercados para produtos do agronegócio brasileiro; a se opor ao Acordo do Clima de Paris, de interesse do Brasil em termos até de canalizar fluxos financeiros para o País; de contrariar o Pacto Global da ONU sobre Migrações, quando o Brasil tem 3 milhões de cidadãos emigrados necessitados de proteção em países estrangeiros; e assim por diante.

O projeto de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, felizmente, suspenso; a recusa a abastecer navios iranianos que vieram comprar produtos brasileiros; as acusações gratuitas à China; o anúncio, mais tarde revertido, de abandono do Acordo de Paris; a recente medida declarando como organização terrorista o Hezbollah, a principal força política no governo do Líbano, país de origem de milhões de cidadãos brasileiros; essas são algumas das consequências contrárias ao interesse nacional do alinhamento servil e humilhante aos interesses da política de Trump.

Quando secretário da Unctad, das Nações Unidas, com o então presidente Fernando Henrique e o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, no Palácio do Planalto. Foto: José Paulo Lacerda/AE

N - Quais, a seu ver, podem ser os resultados práticos de uma possível gestão do filho caçula do presidente Jair Bolsonaro, Eduardo, caso o Senado da República autorize que ele assuma a missão complexa de ser embaixador do Brasil em Washington, posto pelo qual o senhor passou, nesta era internacional confusa e interessante?

R - O mais importante posto diplomático brasileiro, Washington requer do embaixador experiência, maturidade, equilíbrio, conhecimento minucioso da complexidade dos problemas internacionais, excelente preparo em economia e finanças, porque é a sede do FMI, do Banco Mundial, do BID; flexibilidade e capacidade de diálogo para realizar public diplomacy, diplomacia pública, quer dizer, a diplomacia que se faz não em relação ao governo estrangeiro, ao Departamento de Estado, mas junto à sociedade civil, à imprensa, aos think tanks (Washington tem a maior densidade de  todas as capitais), ao Congresso, incluído o Partido Democrata, adversário de Trump. Será que o filho de Bolsonaro possui essas qualidades? Não se trata de preconceito corporativo. Houve grandes embaixadores em Washington fora da carreira diplomática: Oswaldo Aranha e Walther Moreira Salles, por exemplo. Mas o simples nome desses homens indica a qualidade excepcional que tinham: grandes personalidades da vida política e financeira do Brasil, ex-ministros da Fazenda. Acresce que o embaixador deve representar todos os brasileiros, e não uma seita de extrema direita. Ora, Eduardo Bolsonaro é o representante para a América do Sul de The Movement, a organização extremista de Stephen Bannon, aquilo que os americanos justamente denominam lunatic fringe, a franja lunática da opinião pública.

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O posto de embaixador deve ter institucionalidade, não pode servir para representar uma pessoa, uma família. Outro aspecto é a imparcialidade para julgar os assuntos. O pior defeito de um diplomata é se identificar com o governo estrangeiro e passar a defender os interesses desse país. É o que fez Eduardo Bolsonaro ao tomar partido público pela reeleição de Trump, ao declarar à Fox News que apoiava a construção do muro na fronteira com o México porque muitos dos imigrantes eram criminosos, ao afirmar que sentia vergonha pelos brasileiros imigrantes ilegais, gente honrada e trabalhadeira que emigrou por não ter encontrado oportunidades no Brasil.

Nesse sentido, o embaixador deve gozar de acesso aberto às autoridades do governo estrangeiro, mas não ser demasiado próximo, porque a proximidade excessiva, a familiaridade, facilita que ele seja explorado como instrumento de interesses do país estrangeiro. Sendo familiar do presidente, o perigo é que, se amanhã, os americanos quiserem que o Brasil participe de alguma operação contra um vizinho, a Venezuela, por exemplo, nem o Itamaraty, nem o Congresso, nem a sociedade ficarão sabendo até que seja tarde demais.

Para ver Roda Viva da TV Cultura com Ricupero em 2017 clique aqui

N - Não tenho a pretensão de que o senhor concorde comigo com o uso da palavra interessante para um cenário, no mínimo, inusitado, com a China comunista assumindo protagonismo no comércio capitalista; a democracia americana sendo desafiada por um chefe do Executivo apegado a crenças retrógradas na pátria da inovação e da liberdade; um antigo agente da polícia secreta bolchevique se perpetuando no poder para evitar a volta do domínio político do crime organizado na Rússia; o Reino Unido desafiando a União Europeia, apesar dos prejuízos do novo isolacionismo; e os efeitos maléficos de nosso socialismo de rapina, entre os quais a aventura do feroz populismo individualista. A que circunstâncias históricas o senhor atribui esses planisférios de ponta-cabeça, como dizem os paulistas, num século de iluminação e aquecimento pelo fogo?

R - O adjetivo usado por você justifica-se no contexto da célebre maldição chinesa: "Que você viva em tempos interessantes!". Sua descrição do mundo atual é precisa, incisiva. Não tenho a pretensão de saber a resposta. Se soubesse a explicação, provavelmente teria de escrever um tratado de centenas de páginas. O que se pode dizer é que todos os analistas de relações internacionais, realistas como Kissinger ou favoráveis a uma concepção mais idealista, concordam que assistimos hoje à erosão progressiva do sistema internacional instituído em 1944/1945, depois da 2.ª Guerra, em grande parte graças aos esforços de Franklin Delano Roosevelt. Esse sistema - ONU, FMI, Banco Mundial, Gatt, depois OMC - ajudou a garantir 75 anos sem uma nova guerra mundial, facilitou o processo de liquidação da URSS sem guerra, soube acomodar a ascensão da China comunista. O processo de erosão não começou com Trump, já vinha de antes, por influência das profundas transformações estratégicas (fim do comunismo, da guerra fria, da URSS, surgimento da China como potência de primeira grandeza), econômicas (a globalização e suas vítimas), a desigualdade crescente, o impacto da revolução tecnológica nas comunicações, na eletrônica, as forças demográficas. Aos poucos o mundo deriva para uma situação em que a busca de uma ordem internacional baseada em normas, definida pela procura de soluções consensuais, se vê substituída pela afirmação do interesse nacional dos poderosos em armamentos e meios econômicos, o retorno ao que um estadista italiano do passado chamou de il sacro egoísmo, isto é, o nacionalismo, a nação acima de tudo e de todos, danem-se os demais. Será um mundo cada vez mais perigoso, como já se começa a ver.

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Além disso, só me resta citar uma frase brilhante de Ortega y Gasset. "No sabemos lo que nos pasa. Y esto es precisamente lo que nos pasa: no saber lo que nos pasa". Eu não saberia dizer melhor.

Ricupero e Fernando Henrique no teatro da Faap durnte a palestra sobre "Crise na Europa: O que vem pela frente?", à qual compareceu ex-ministro britânico Peter Mandelson. Foto: Paulo Liebert/AE

N - Mirando o telescópio para nossos pés, que avaliação o senhor faz das perspectivas de conflito nas relações Brasil-Argentina, depois de muitos anos de pasmaceira e Mercosul, mas de trocas satisfatórias para ambos os lados, nas quais os vizinhos se mantiveram numa média de 8% do comércio bilateral, depois dos insultos de "bandidos" dirigidos pelo presidente Jair Bolsonaro contra a dupla Alberto Fernández-Cristina Kirchner? Completando, o senhor vê na manifestação por "Lula livre" assumida pelos peronistas como retaliação a essa retórica?

R - Os insultos repetidos de Bolsonaro, de Paulo Guedes, de Ernesto Araújo aos candidatos da chapa peronista representam mais uma confirmação de que este governo pratica a antidiplomacia, trata os demais países de modo leviano e irresponsável. No exemplo das eleições argentinas, equiparar Alberto Fernández a Nicolás Maduro, a esquerdistas radicais, revela ademais ignorância pasmosa da política no vizinho país. Fernández não é um títere de Cristina Kirchner, ao contrário, rompeu com ela em 2014, deixando o governo quando a então presidente começou a ceder à ala mais extremada do partido. Junto com Sérgio Massa e outros, Fernández faz parte de um grupo de peronistas de centro empenhados em abrir uma nova via moderada, de classe média, para o movimento peronista. É professor de Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Provavelmente uma de suas primeiras medidas depois de eleito será tranquilizar os mercados internacionais e os empresários internos. É interessante que a causa de sua ruptura em 2014 foi discordar do conflito aberto por Cristina com o poderoso e influente setor rural argentino. Como se vê, um mínimo de prudência e sensatez exigiria aguardar até que se definam as eleições e a orientação do futuro governo. Tratando-se do nosso mais importante vizinho, com o qual frequentemente tivemos no passado relações conflitivas, a prudência impõe-se ainda mais.

O aspecto mencionado da proximidade com Lula provém das relações amistosas que mantiveram os dois movimentos, o PT e o peronismo, no passado recente. Isso não significa que, depois da eleição, o novo governo não busque manter o melhor relacionamento possível com o Brasil. Como se diz em diplomacia, vizinhança é uma fatalidade da geografia, ninguém escolhe seu vizinho. O que se escolhe é manter com ele boas ou más relações. Depois da primeira reação às provocações, Fernández declarou publicamente que havia errado em responder a Bolsonaro, que o Brasil é mais importante que Bolsonaro, assim como os Estados Unidos são mais importantes do que Trump. Deu uma lição de equilíbrio e boa educação ao mandatário brasileiro.

Para ver entrevista de Ricupero no Canal Livre da Band clique aqui

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N - Para ficarmos aqui no âmbito do Mercosul, o senhor recebeu com alvíssaras o fim das prolongadas negociações para a agora anunciada parceria entre a União Europeia e o Mercosul? E continuando na mesma questão, chega a se preocupar com eventuais dissabores nesse pacto com um possível encrespamento das relações bilaterais no caso de uma mais que previsível vitória peronista além da nossa fronteira sul?

R - Não creio que um governo peronista ponha em risco o acordo. A Argentina preocupa muito os europeus. Estou informado de que foi justamente para tentar ajudar a Argentina que a Comissão Europeia quis concluir o acordo, muito mais que em razão do governo Bolsonaro, olhado com desconfiança e hostilidade pela maioria dos europeus.

O que ameaça a entrada em vigor do acordo é o desmatamento da Amazônia, tolerado e encorajado pelo governo Bolsonaro, o menosprezo à proteção dos povos indígenas, a orientação obscurantista de oposição às questões de igualdade de gênero, aos direitos humanos, o alinhamento subserviente ao governo Trump, destruidor da ordem internacional e hostil à União Europeia.

Ricupero com dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, na inauguração da exposição sobre São Francisco de Assis no MAB da Faap. Foto: Marina Malheiros/Estadão

N - Ainda sem sairmos da América do Sul, vou apelar para minhas lembranças, que o situam em negociações em Assunção entre Brasil, Argentina e Paraguai em torno de Itaipu e Yacyretá. Seja ou não confiável minha memória de quase septuagenário, o senhor se arrisca a opinar sobre esta crise provocada no Paraguai, quase levando o Congresso a votar o impeachment de Mario Abdo Benítez por causa do contencioso criado pelo acordo mais recente a respeito da compra de eletricidade paraguaia pelo Brasil?

R - Sua memória é excelente. De fato, estive diretamente envolvido nas negociações e fui durante largo tempo membro do Conselho da Itaipu Binacional. Desde o princípio ficou claro que Itaipu seria indispensável como fonte de energia aos dois países, mas proporcionalmente muito mais ao Paraguai do que ao Brasil. No princípio, o consumo de energia do Paraguai inteiro era equivalente ao da cidade de Petrópolis. O excedente, segundo o tratado, seria preferencialmente vendido ao Brasil. À medida que o Paraguai se industrializa, em boa parte graças à energia barata da usina, vai sobrar cada vez menos para ceder ao Brasil. Os paraguaios sempre pretenderam rever os termos do tratado para mudar o critério de cálculo do preço da energia. Teremos de conviver com esses problemas durante a vida útil da usina. A verdade é que, apesar de todas as dificuldades, invariavelmente se logrou uma solução de compromisso. Existe nessa relação um elemento de desigualdade de tamanho e riqueza entre o Brasil e o Paraguai. Evidentemente, buscou-se dar tratamento mais favorável ao nosso vizinho a fim de facilitar seu desenvolvimento, o que está acontecendo.

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No caso recente citado na pergunta, há, obviamente, um elemento ligado à disputa interna do Paraguai, onde tudo o que se refere a Itaipu adquire logo importância crucial. Mas há igualmente acusações de corrupção, de tráfico de influência em favor da empresa brasileira favorecida, de ligações impróprias de autoridades brasileiras com essa empresa. Confesso não dispor de informações especiais além das que leio na imprensa. Há uma investigação em curso no Paraguai e imagino que ela deverá trazer revelações futuras sobre o que realmente se passou.

Para ver Ricupero entrevistado por Maria Lydia na TV Gazeta clique aqui

N - A natureza dessa crise me leva a uma questão mais abrangente sobre a volta do personalismo nas relações internacionais. Se Trump e Putin parecem administrar as grandes potências que presidem como se disputassem merenda no recreio escolar, também não deixa de ser notável que Bolsonaro reduza as complexas relações entre grandes economias como Brasil e Estados Unidos a um permanente convescote familiar que envolve os filhos de ambos os lados, sem esquecer que Eduardo Bolsonaro chegou a usar um boné de campanha do republicano em território americano. E numa dimensão mais caseira, não esquecer o aspecto meramente pessoal das relações do capitão Bolsonaro com Benítez no Paraguai e Macri na Argentina. Seria mais uma onda de regresso de natureza tribal nestes tempos de alta tecnologia convivendo com criacionismo religioso e rejeição às cruzadas sanitárias de Fleming e Sabin?

R - Não sei se é regresso às tribos ou às relações entre famiglias de tipo mafioso. Veja que nos exemplos citados há algo disso. Ao contrário, ninguém diria que a política da Alemanha, da França, da Suíça, Suécia, Dinamarca, Noruega, padecem do mesmo mal. Nessas democracias consolidadas, o padrão é institucional, de impessoalidade.

 

N - Que expectativas tem o senhor para a possibilidade de as reformas da Previdência e tributária puxarem o Brasil para fora da fossa nada asséptica em que mergulhou nossa economia nestes anos de petismo nada probo, com antipetismo nada inteligente?

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R - Não creio que essas reformsejam suficientes para tirar a economia da estagnação. O Brasil vem crescendo pouco há muito tempo. De 1981 a 2020, tudo indica que, em média, o crescimento real per capita não ultrapassará a taxa de 0,8% ao ano. Nesse passo levaríamos 87 anos para dobrar a renda per capita. Como se vê, a tendência vem de longe, com exceções raras e de curta duração. O País parece prisioneiro do que os economistas chamam da "armadilha da renda média", quer dizer, as economias crescem rapidamente até atingir a renda intermediária e depois lutam com muita dificuldade para romper a limitação. No Brasil de hoje, com 25 milhões de desempregados ou pessoas com emprego em tempo parcial, o que dá 70 milhões com as famílias, o consumo e a demanda são anêmicos. Não será com doutrinas ultraliberais, extremas, de deixar tudo à iniciativa do mercado que se conseguirá sair da estagnação.

Para ver Ricupero entrevistado por Mônica Teixeira na TV Cultura clique aqui

N - Que saídas o senhor vê, a esta altura do campeonato, para o determinismo do general Golbery do Couto e Silva do pêndulo entre sístoles e diástoles que fazem esta imensa nação refém histórica dos populistas da esquerda pouco republicana, com demagogos da direita pouco inteligente?

R -  Nem o Brasil, nem praticamente nenhum outro país da América Latina, com a possível exceção do Chile, conseguiu em 200 anos de vida independente conciliar democracia de massas, estabilidade política, solidez econômica, crescimento sem oscilações por períodos prolongados e inclusão social. Há fases de presença maior ou menor de alguns desses elementos, com ausência de outros. Avançou-se no Brasil em democracia participativa, eleitorado que se confunde praticamente com toda a população de mais de 16 anos, relativa estabilidade da moeda depois do Plano Real, situação mais confortável em termos de reservas internacionais. Falta muito, porém, para conquistar um mínimo de responsabilidade fiscal nas esferas de municípios, Estados e União, na melhora da produtividade, numa educação de qualidade capaz de produzir recursos humanos qualificados para os desafios modernos, na integração de gigantescos setores das periferias que sobrevivem com renda baixíssima e subemprego. Provavelmente os avanços nesses domínios serão graduais e vão demandar não menos que três gerações, isto é, mais de 75 anos, sobretudo em razão do atraso educacional e da circunstância que mudanças estruturais na educação e na cultura demandam períodos longos.

Ricupero: " Brasil não conseguiu em 200 anos de vida independente conciliar democracia de massas, estabilidade política, solidez econômica e crescimento com inclusão social.." Foto: Amanda Perobelli/Estadão
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