Foto do(a) blog

Direto ao assunto

A CPI e a lavoura salvam o Brasil

Agronegócio evita hecatombe econômica na pandemia, embora não mate a fome do povo, e CPI da Covid no Senado susta avanço da mão peluda e armada de Bolsonaro tentando assaltar erário e democracia

PUBLICIDADE

Por José Neumanne
Atualização:

 

Não é de hoje a dependência da economia brasileira do agronegócio, e tornou-se maior e mais evidente no advento da quarentena imposta pela necessidade do isolamento social por causa do contágio do novo coronavírus. Aumentos de preços das commodities no mercado internacional agravaram o impasse causado pela predominância da rodovia sobre a ferrovia nos transportes de carga no território nacional, levando ao encarecimento dos derivados do petróleo. Mas as cotações dos produtos agrícolas evitam que a grave crise econômica se torne pior. O boicote desde abril da compra de carne bovina pelo maior país importador de nosso gado, a China, até agora não prejudicou tanto nossa balança comercial.

PUBLICIDADE

Na política, a pandemia da covid-19 tornou-se o grande impedimento para o desgoverno Bolsonaro desabar com a evidência de que ele tem cumprido um insolente e inaceitável programa de demolição programada das instituições. Mas a subida à cena de uma comissão de inquérito garante o exercício da transparência do Estado de Direito. Isso demandou luta e o que foi obtido merece um capítulo especial na história da penosa reconstrução democrática desde 1988. O direito das minorias é tão essencial à soberania democrática quanto o respeito às decisões da maioria. No caso, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado chega ao desfecho em meio a uma primavera outonal e s uma crise hídrica com inesperadas tempestades fora das previsões. Mas a tempo e a hora.

Ao desautorizar a instalação da investigação, Rodrigo Pacheco, feito presidente do Senado com apoio milionário do desgoverno em desserviço, não atendeu, como deveria, ao direito de minoria, invocado por Jorge Kajuru e Randolfe Rodrigues. Ação movida por Randolfe e Alessandro Vieira obteve o aval do Supremo Tribunal Federal (STF), cumprido pelo presidente renitente. Já nas primeiras sessões a comissão mostrou que se dispunha a agir, e não a transigir. Recebida com expectativa anunciada de pizza ao fim e ao cabo, a CPI mostrou logo que ocuparia o espaço que vinha sendo conquistado pelo Tribunal de Contas da União, subordinado ao Legislativo, e em momentos esporádicos pela cúpula do Poder Judiciário.

Excluídas da composição pelos machistas líderes partidários nessa cleptocracia (apud Modesto Carvalhosa) semiparlamentarista por conveniência, as mulheres desempenharam papel relevante em seus bons resultados. A experiência do suplente Alessandro Vieira, policial de ofício, foi fundamental ao preparar a revelação do fato novo mais espetacular da investigação. Mas só a conseguiu com a ajuda inestimável de Simone Tebet. Os dois levaram o deputado Luís Miranda a revelar Ricardo Barros como protagonista da revelação de que negacionismo de vacinas foi apenas a cortina de fumaça para impedir que fosse percebido o "negocionismo" no mercado sujo de doses inexistentes de imunizantes indisponíveis.

Daí, chegou-se ao abominável Onyx Lorenzoni, desmascarado quando, ao tentar acusar o burocrata Luís Ricardo Miranda de ter falsificado uma fatura, de fato terminou revelando a pontiaguda saliência visível de uma cínica e ramificada picaretagem de um esquema de corrupção. Então, emergiram das sombras, além de Ricardo Barros, um PM, falsas instituições benemerentes, oficiais da ativa e da reserva das Forças Armadas e burocratas plantados em postos do antes elogiado Sistema Único de Saúde (SUS), preterido para não atrapalhar as negociatas.

Publicidade

Ao longo dessas descobertas, que desvendaram os segredos de uma máquina de produzir óbitos em UTIs, destacou-se o trabalho do trio dirigente do inquérito. O presidente, Omar Aziz, foi o inesperado garantidor dos avanços executados pela eficiência do vice-presidente, Randolfe Rodrigues, e do relator, Renan Calheiros. Com os olhos do País fixados nas transmissões ao vivo das sessões, foram produzidas cenas que humanizaram a aparente frieza da aritmética do número de mortos exposta em plaquetas. Tadeu Andrade, cuja vida foi salva pela teimosia da filha; Giovanna Silva, órfã aos 19 anos que tem a guarda da irmã, de 10, após a perda dos pais; e Marco Antônio Silva, que lamentou a morte do filho, Hugo, por falta de vacina, comoveram o País. Ao inspirarem a gargalhada do primogênito de Bolsonaro, Flávio, em teoria imitando o pai, os três ajudaram a expor a desumanidade e a falta de empatia de uma famiglia sem sentimentos. A atitude ainda "evidencia o desespero por terem agora de prestar contas à Justiça", na opinião do relator Renan Calheiros, manifestada no vídeo da semana da série Nêumanne entrevista no Blog do Nêumanne no portal do Estadão.

Na referida entrevista, o senador alagoano não se furtou em falar com orgulho do trabalho de equipe que resultou em seu relatório. Segundo ele, "nunca uma comissão parlamentar de inquérito teve o apoio que esta teve da sociedade e isso precisa ser dito, repetido e comemorado". De fato, as previsões de que tudo acabaria em pizza desabaram ante a gravidade dos crimes revelados. Se o procurador-geral da República, Augusto Aras, não despachar a favor da continuação das investigações, seja para adular quem o nomeou, seja para deste conseguir futura indicação ao STF, interferirá negativamente na própria biografia, e não na do relator. Além dos aplausos do plenário da CPI, dos índices de apoio nas pesquisas, da audiência das sessões noticiadas e da repercussão no exterior, ressoa a constatação de que nem todos se acovardaram. Ainda há quem desmascare mentiras como a contada por Bolsonaro na infame live no palácio, na quinta-feira (21/10), de um falso aumento de incidência de aids em vacinados anticovid no Reino Unido.

*Jornalista, poeta e escritor

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.