Que tal um "disclaimer" para a Bíblia?

A publicação de cartas de Monteiro Lobato com teor racista, na revista Bravo!, ressuscitou a discussão sobre a necessidade de fazer a obra de um dos maiores autores brasileiros ser carimbada com advertências sobre seu racismo. Das várias manifestações a favor dessa medida, uma das mais completas foi expressa por Paulo Moreira Leite em seu blog. Ele se diz contra proibir Lobato por causa de seu racismo, mas afirma que "esses ataques" não podem "circular livremente", "num país em que 53% dos brasileiros se consideram negros". Para Leite, as "agressões" de Lobato demandam "contextualização" crítica, porque "o mesmo Estado que tem o dever de defender a liberdade de expressão de Lobato também tem a obrigação de condenar ataques racistas".

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É óbvio que toda obra clássica deve ser contextualizada, porque textos assim são espelhos de um passado que nos influencia de modo determinante. Para compreender um clássico, é preciso mergulhar nele e conhecer o repertório que o engendrou. No entanto, o que muda essencialmente de nossa leitura de Voltaire quando conhecemos seu lado antissemita? O que muda quando sabemos que Picasso atormentou sua amante Dora Maar para ter um modelo de sofrimento para sua obra-prima Guernica? O que muda quando lemos que o Padre Antônio Vieira, talvez o mais importante orador em língua portuguesa, considerava a escravidão uma dádiva para os negros, porque os havia tirado da condição de gentios na África?

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Desse modo, a contextualização de Lobato deve ser feita sim, mas não por um militante do politicamente correto, preocupado em defender os "53% dos brasileiros que se consideram negros", e sim por quem trate o texto como documento de uma época e explore sua riqueza para conhecermos melhor o mundo contraditório em que vivemos.

Se Lobato só puder circular com um "disclaimer" sobre seu racismo, então sugiro que a Bíblia seja sempre acompanhada de um aviso no qual se leia: "Esta obra faz apologia da escravidão e da sujeição feminina".

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