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As lições do grande genocídio

Ontem, segunda-feira, foi o Yom Ha'Shoah, o dia da lembrança do massacre de judeus na Segunda Guerra Mundial. Ainda há quem tente diminuir ou "discutir" esse acontecimento, o que só reforça sua atualidade. Não deveria ser necessário reafirmar que a Shoah (o conhecido Holocausto) é o grande marco da civilização contemporânea. A simples dúvida sobre esse valor, isto é, a tentativa de relativizá-lo (ou de negá-lo, em muitos casos) é suficiente para mostrar que o vírus do genocídio não foi derrotado.

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Assim, o que faz o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ao relativizar a Shoah, é muito mais do que uma provocação. É uma bem planejada estratégia de exploração da indiferença da massa ante o "outro", que prepara o caminho para um novo genocídio, caso seja essa a decisão do Líder. Um componente essencial desse discurso é o antagonismo em relação à chamada "modernidade", à crescente complexidade social e a um contexto global cada vez mais interligado. Nesse universo, a massa se nutre de pessoas que, de uma forma ou de outra, não se sentem autônomas e cuja capacidade de reação está arruinada, tanto pela máquina de propaganda quanto pelo terrorismo do Estado. Para líderes de perfil genocida como Ahmadinejad, essa é a argila com a qual será esculpido o "novo homem", para o "futuro glorioso" da República Islâmica.

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O mais perturbador, no entanto, é que Ahmadinejad não está só. Com inteligência, ele explora também o sentimento antiocidental de movimentos de contestação do capitalismo, em várias partes do mundo, para arregimentar "legitimidade". Não é difícil perceber o equívoco desses movimentos. Ahmadinejad é a face estridente de um regime inimigo de tudo o que diz respeito ao secularismo e às liberdades, que são as grandes conquistas políticas contemporâneas, em grande medida obtidas graças à luta de revolucionários de esquerda. Foi Ahmadinejad que, em discurso na ONU, disse que a humanidade "atingirá seu zênite" quando "o imã Mahdi" (sucessor de Maomé, para os xiitas) aparecer como messias, assistido por todos os "pios e virtuosos" para que venha essa "era magnífica". A leitura é óbvia: no mundo ideal de Ahmadinejad, só cabem os que professam a fé dos aiatolás iranianos. Mais ofensivo aos ideais democráticos pelos quais tantos tombaram, impossível.

É por esses motivos que Ahmadinejad e o que ele representa não podem ter apoio. A única resposta possível a essa tentativa de impor uma visão de mundo deletéria - e, no limite, genocida - é o isolamento diplomático, ao qual o Brasil de Lula, infelizmente se opõe. As razões que levam o atual governo brasileiro a emprestar solidariedade a Ahmadinejad passam pela estratégia de antagonizar os EUA a fim de ganhar questionável brilho geopolítico. O discurso de Lula, contudo, vai além da simples fórmula antiamericana: ele consegue ver justificativa nas invectivas de Ahmadinejad em relação à Shoah. Não se quer dizer, com isso, que Lula relativize, ele mesmo, o genocídio dos judeus, mas sua leniência em relação ao ódio antissemita de Ahmadinejad dá margem à conclusão de que ele considera esse comportamento pelo menos aceitável.

Como há gente civilizada que consegue dar razão a Ahmadinejad e defender o "diálogo" justamente com quem é inimigo do diálogo, parece importante, em mais um Yom Ha'Shoa, enfatizar a maior lição do grande genocídio dos judeus na Segunda Guerra: a de que a civilização se mostra incapaz de aprender com seus erros. A barbárie não é um traço isolado, acidental e eventual da civilização, mas sim parte definidora, essencial mesmo, da própria ideia de civilização. A Shoah não aconteceu porque a sociedade europeia desceu à barbárie, mas porque já estava nela, sem que se desse conta disso. A tarefa dos historiadores e dos educadores, como mostrou Adorno, é expor essa contradição e constranger os perpetradores em potencial a não se render ao conforto da massa, que age sob os auspícios de uma razão fabricada, fruto de uma ideologia destrutiva. Somente a educação livre e crítica é capaz de garantir que o indivíduo conseguirá refletir sobre sua condição para além da retórica cínica do poder, negando-se a aderir ao pensamento único, motor do totalitarismo.

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