EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Somente uma "renovação profunda" pode relançar a esquerda no mundo

É impossível não concordar com o ex-governador gaúcho Tarso Genro (PT-RS) quando disse, na reunião de ontem do Diretório Nacional petista, que é preciso por em curso no partido uma "renovação profunda" porque "existe uma crise de perspectivas na esquerda mundial e em todo o campo democrático".

PUBLICIDADE

Foto do author Marco Aurélio Nogueira
Atualização:

Fiel a seu estilo e a sua biografia política, Tarso escancarou, com a frase nada sutil, o mal-estar que viceja no PT e no conjunto das forças democráticas mais à esquerda. Não perguntou, mas poderia tê-lo feito: por que não há protagonismo dos democratas radicais (que tomam as coisas pela raiz), por que seu projeto político não aparece, não decola e não se traduz em fatos? Por que, num contexto em que crescem as dificuldades econômicas, reduzem-se as receitas públicas e aumentam as faixas de pobreza, a esquerda resfolega, parece em estado de choque e quase nada propõe? Por que, enfim, no caso brasileiro, o PT segue um roteiro insosso e paralisante, deixando-se passivamente pautar pelo mercado, ao passo que o PSDB, o PSB, o PPS, o PSol e outras forças de esquerda e centro-esquerda não sobem ao palco para recitar suas falas?

PUBLICIDADE

Os partidos que respiram no mundo -- como o Syriza grego e o emergente Podemos! espanhol -- ainda não foram provados, mas seguem claramente a trilha da "reinvenção": rejeitam fórmulas repisadas, discursos cansados, ideologias formatadas como receitas de bolo, estruturas burocráticas e hierarquias pesadas, lideranças messiânicas. Buscam substituir tudo isso por construções mais horizontais, flexíveis, criativas, críticas do mundo político realmente existente e dos poderes fáticos. Suas lideranças são jovens, têm pegada midiática, trabalham em rede e não desejam fazer muitas concessões à política estabelecida. Querem não só mudar o governo, mas alterar o "paradigma" das políticas de austeridade prevalecentes e, por aí, modificar o modo mesmo como as esquerdas operam quando chegam ao governo ou fazem política. Pretendem dialogar com blocos sociais, mais que com alianças políticas ou eleitorais.

Em grego, Syriza é o acrônimo de "coalizão das esquerdas radicais". São palavras que vêm permitindo interpretações equivocadas, como se ser radical significasse ser extremista, posição que se auto-exclui de maiores esforços unitários. Syriza não pretende funcionar como um agregado de pequenos partidos, mas formar uma coalizão sociopolítica interessada em recompor o bloco social: unir o que o neoliberalismo separou. Como gosta de dizer Tsipras, "a verdadeira luta começará depois da vitória eleitoral. Nossa experiência de governo terá como epicentro os movimentos, porque sem o apoio das pessoas não poderemos por em prática nossas ideias".

Num mundo plural e fragmentado como o de hoje, as esquerdas também se mostram fragmentadas. Parte deste processo tem a ver com os estragos do neoliberalismo. O social seguiu uma via, o político foi em outra direção. Deu-se o mesmo com a luta por direitos, a questão dos valores e a luta por conquistas materiais. Sindicatos e movimentos culturais passaram a falar línguas distintas, do mesmo modo que os indivíduos deixaram de dialogar com as pautas coletivas. Têm faltado pontes democráticas, esforços unitários e de recomposição, excessiva concentração na conquista de poder e espaços eleitorais, carência enorme de uma ideia de sociedade que sirva de referência. A conflitualidade é tensa e intensa, mas produz poucos efeitos positivos.

Os partidos continuam a ser essenciais para a democracia, mas só poderão fazê-la funcionar bem se eles próprios funcionarem bem e refletirem os humores sociais. De costas para a sociedade só fazem atrapalhar. Se a sociedade vive em rede e está mais dinâmica e plural do que nunca, os partidos precisam saber acompanhá-la. Não há modelos rígidos de organização partidária, nem muito menos partidos que "comandem" mediante jogos de cena e "linhas programáticas" que sejam seguidas pelas massas. Nas sociedades atuais, não há mais espaço para que se sustente a ideia de que a consciência das pessoas é formada a partir da ação de um partido que sabe tudo. Ouvir e discutir (confrontar e divergir, portanto) tornaram-se critérios democráticos que precisam ser vividos sem que esta ou aquela parte se afirmem de antemão como superiores, ou melhores do que os demais.

Publicidade

Não dá para saber se Syriza e Podemos! vencerão, mas a mensagem que proclamam vem embalada pela brisa fresca das promessas dignificantes.

Enquanto isso, no Brasil, Tarso dixit à parte, a carroça reformista segue empacada. E aquele que se propôs arrogantemente a ser o carroceiro -- muitas vezes vestindo as roupas do condutor de massas -- persiste imerso numa cegueira paralisante, que o leva a não se posicionar com clareza, a não definir para onde caminhar e o que propor aos que ainda aceitam sua direção. Crise de perspectivas em estado bruto.

Dada sua explicitação plena, a ideia de "renovação profunda" ganha foros de urgência, de esforço emergencial. Precisa, pois, ser traduzida adequadamente, convertida em programa de trabalho intelectual amplo, para assim ganhar densidade e se converter em cultura. O pior que pode acontecer agora é a "renovação" virar expediente para consolidar partidos no governo ou reforçar projetos de poder que estão a fazer água por todos os poros.

Renovar é preciso e em profundidade, de forma radical. A começar dos próprios métodos com que se tentará a renovação: que se ponha o tema à luz plena do dia, aberto a todos, sem matrizes teóricas rígidas, discursos encomendados e circuitos deliberativos engessados.

Tarefa tanto mais difícil quanto inadiável.

Publicidade

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.