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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Os dois Brasis e as ruas

Milhares de pessoas lotaram ruas de várias cidades brasileiras na noite de ontem, sexta-feira dia 18 de março. Foi uma demonstração de peso, que fornece elementos para a análise da atual situação política, da correlação de forças e dos humores da cidadania. Lula conciliou, o PCdoB tentou incendiar a galera. No final, prevaleceu o tom do ex-presidente, que contrastou especialmente a agressividade verbal, artificial e mentirosa da mais recente Dilma.

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Atualização:

Além de terem garantido que "não vai ter golpe", as manifestações foram marcadas pela tranquilidade. Todos voltaram em paz para casa, sem acidentes dignos de nota.

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Com isso, completou-se um quadro que se vem delineando desde ao menos 2013.

Há dois Brasis hoje nas ruas, protestando e se manifestando. Não são somente dois blocos de posicionamentos políticos e ideológicos, ainda que isso esteja claramente presente. São também -- e sobretudo -- duas configurações de sociedade, expressões tanto de um mundo social que resiste agarrado a certas tradições e a certas "narrativas", quanto de um mundo social que emerge impulsionado pela "novidade", pela ausência de disciplina e por "narrativas pós-modernas". Falando por metáforas: uma sociedade sólida ao lado de uma sociedade líquida, uma ordem social atada a organizações estruturadas à moda antiga -- promotoras de comunidades mais "pesadas" -- e uma ordem social "desorganizada", individualizada, movida por enxames de indivíduos soltos, donos de suas cabeças, desagregados, que se reúnem por espasmos momentâneos, razões flutuantes e lealdades erráticas.

Não são dois mundos separados por fronteiras rígidas. Estão juntos e misturados, sendo frequentados por pessoas que experimentam as mesmas situações estruturais e compartilham as mesmas condições existenciais: a militância em redes,  o manuseio de informações, a alta reflexividade, a rapidez das mudanças, a incerteza, a invasão tecnológica, a desestruturação do trabalho, a perda do emprego, a dificuldade de alcançar identidades estáveis, a desconfiança na política instituída e na classe política, a espetacularização da vida, manifestações performáticas, com shows e dancinhas coreografadas.

Esses dois mundos vocalizam hoje um sonoro "não ao golpe", defendem a democracia como valor, querem direitos, questionam os políticos, endeusam e seguem mitos heroificados e salvacionistas -- Moro e Lula --, comungam um sem-fim de credos comuns. Preconceitos, ressentimentos, frustrações, taras regressistas e valores progressistas distribuem-se equilibradamente entre eles, que são frequentados sem maior distinção por representantes dos diferentes estratos sociais. Unidade na diversidade.

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A esta altura dos acontecimentos, o impeachment de Dilma deixou de ser o problema principal. Não é tão importante saber se ele vai ou não ocorrer, quando e como isso ocorrerá, se é que ocorrerá. Algum desfecho a crise política terá, cedo ou tarde. A imponente presença das ruas, com seus protestos e manifestações, empurrarão os políticos e os levarão a celebrar um acordo.

O mais importante é outra coisa: é saber o que terá de ser feito para que os "dois Brasis" se integrem cada vez mais, confluam um no outro, de modo a que um possa corrigir e completar o outro, acelerando a transição temporal e adubando uma reconstrução da convivência que será estratégica para o futuro. A hora não é de fomentar golpes fantasiosos à direita ou à esquerda, punições exemplares ou caçadas a quem quer que seja, operações que somente servem para atritar os brasileiros entre si, jogar uma configuração social contra a outra, inventar "lutas de classes" que não estão politicamente objetivadas nem organizadas no plano das consciências.

Estamos certamente carentes de atores que se disponham a esta tarefa. Mas é próprio dos humanos encontrar saídas surpreendentes nos momentos mais dramáticos da história. E é nesta direção que devem trabalhar os democratas de todos os matizes.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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