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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Edgar Morin: «Uma Ucrânia neutra e federalizada seria uma solução aceitável por todos».

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Atualização:

A invasão da Ucrânia pela Rússia nos últimos dias de fevereiro evoluiu e se converteu em guerra. Mortes já são expressivas, o clima é de tensão e seus efeitos alcançam o conjunto dos países, dada a interdependência do mundo globalizado. Sanções econômicas empreendidas pelas potências ocidentais coincidem com notícias de ataques russos a alvos civis. Encontros diplomáticos entre russos e ucranianos não tiveram resultados até agora. A resistência ucraniana parece ter surpreendido Moscou, que projetava uma guerra rápida.

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Enquanto se buscam negociações que suspendam os ataques e protejam os que desejam sair da Ucrânia, análises e prospecções continuam a ser feitas com intensidade. Intelectuais e especialistas procuram compreender as razões do conflito e as possibilidades que se abrem para sua superação.

Em artigo divulgado na França e publicado no Brasil na página da Unisinos, Edgar Morin, um dos mais ativos, importantes e prestigiosos pensadores da contemporaneidade, faz uma detalhada reconstrução dos fatos que estão na base do conflito. Analisando o quadro histórico mais geral em que nasceram e se desenvolveram os atritos, Morin considera tanto o impulso de Putin no sentido de recuperar as bases territoriais da Grande Rússia, quanto a insistência da OTAN em manter um cerco territorial que dificultasse ou inviabilizasse as pretensões de Putin e, com isso, deixasse a Rússia sob controle do Ocidente.

O pensador francês também procura enxergar as frestas por onde seria possível fazer avançar "a guerra contra a guerra". Avalia que "estamos à beira de um abismo, mergulhados na total incerteza do amanhã". O problema ucraniano, para ele, além de trágico e perturbador, comporta "múltiplas implicações entrelaçadas e outras tantas totalmente desconhecidas".

A Ucrânia, a rigor, viveu em tensão permanente, oscilando entre divisões, independência e integração. Como lembra Morin, "no final do século 18, foi dividida entre a Polônia, o Império russo e o Império austríaco. Tornou-se independente durante as guerras posteriores à Revolução de 1917, mas foi vencida em 1920 e integrada à União Soviética. Seu campesinato sofreu muito cruelmente os efeitos da imposição dos colcozes e da grande fome de 1931". Os ucranianos tiveram por um momento a ilusão de serem libertados pela Wehrmatch, as forças armadas da Alemanha Nazista, embora tenham participado ativamente da resistência ao nazismo. Mais tarde, nos anos da decomposição da URSS, a Ucrânia e a Bielorrússia se tornaram independentes mediante um acordo com a Rússia, então presidida por Boris Iéltsin.

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Morin: "A situação da Ucrânia agravou-se paralelamente à deterioração das relações entre a Rússia e os Estados Unidos. A Ucrânia não é apenas um enclave geopolítico importante para a Rússia e a América: ela é um imenso alvo da cobiça econômica. É a principal reserva europeia de urânio, a segunda em titânio, manganês, ferro, mercúrio. Tem a maior superfície de terras aráveis da Europa, 25% da extremamente fértil terra preta do planeta, produz e exporta cevada, milho e outros produtos agrícolas".

Entre 2013 e 2014, diversas manifestações explodiram a partir de Kiev, sendo violentamente reprimidas pelo governo pró-russo de Viktor Yanukovych. Foi a chamada "Revolução da Dignidade", de onde emergiu a Ucrânia dos dias de hoje, governada por Volodymyr Zelensky desde 2020. Em 2017, a Ucrânia quis ingressar na União Europeia. Como resposta, Vladimir Putin anexou a Crimeia. Estimulou o levante e depois a autonomia da região russófona do Donbas, a sudeste da Ucrânia. "Na verdade, uma guerra tinha começado em Donbas, a despeito dos acordos de Minsk, e nunca mais parou. Desde 2014, o infernal processo das retroações conflituais se agravou e o pior aconteceu em março de 2022".

A guerra russa-ucraniana mostra a força da geopolítica nas relações internacionais e sugere, com clareza, que a política e a diplomacia estão perdendo força como meios de superação de conflitos. Uma globalização sem política, em um sistema multipolar imperfeito, põe em xeque o que pode haver de positivo na interdependência. Um cenário que exige respostas corajosas, que sobreponham o bem-estar dos povos às razões econômicas, monetárias e de segurança, assim como à ênfase obsessiva no controle territorial.

O artigo de Morin nos ajuda a entender o atual estado do mundo. Seguem, abaixo, excertos particularmente relevantes do texto, cuja tradução foi feita por Edgard de Assis Carvalho e revisada por Fagner França.

Edgar Morin, À beira do abismo

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A engrenagem arrogante

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Esse processo foi provocado ao mesmo tempo pela crescente ambição de Putin de integrar a parte eslava do Império em seu território e pela concomitante ampliação da área de influência da OTAN em torno da Rússia. O processo também foi amplamente determinado pelos conflitos de interesses que se intensificaram entre as duas superpotências após o período de aliança Bush-Putin de 2001.

Houve a reconstrução da Rússia como superpotência militar, estabelecendo suas zonas de influência na Síria e na África, a sangrenta reintegração da Chechênia por duas guerras (1994-1996 e 1999-2001). Ocorreu também a intervenção militar na Geórgia (2008), depois a pressão crescente sobre a Ucrânia. Houve simultaneamente, sem aprovação da ONU, uma segunda invasão na guerra do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, algo catastrófico para todo o Oriente Médio, seguida de guerras internas pelo menos até 2009, a invasão da Líbia em 2011. Por fim, os Estados Unidos se envolveram numa guerra no Afeganistão de 2001 a 2021.

Ainda que em 1991, o presidente americano houvesse prometido verbalmente a Gorbatchov que a OTAN não seria ampliada pela inclusão das antigas democracias populares, a Organização integrou em 1999, a pedido, a Polônia, a República Tcheca, a Hungria, depois as repúblicas bálticas seguidas pela Romênia, pela Eslovênia (2004), pela Albânia e pela Croácia (2004), criando de fato um cerco em torno da Rússia, com duas brechas constituídas pela Geórgia e pela Ucrânia.

Esse cerco faz lembrar os tempos do Kremlin, o isolamento da URSS pelos países capitalistas entre as duas Guerras Mundiais e o confinamento da Guerra Fria.  De modo mais subjetivo, daí decorre a psicologia obsessiva de Putin e o endurecimento de seu regime autoritário.  Sob pretexto da guerra contra o Afeganistão, os Estados Unidos instalaram bases militares nas ex-repúblicas soviéticas do sul, no Uzbequistão, no Tajiquistão e no Quirguistão, fechando de fato o cerco na Sibéria.

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Não poderíamos encobrir a crescente oposição entre duas superpotências para ampliar ou salvaguardar sua zona de influência, nem o cerco da OTAN. O acontecimento significativo é que, desde a retirada do Afeganistão, os Estados Unidos estão doravante empenhados em evitar qualquer guerra longínqua e o governo ucraniano aspira ser protegido pela União Europeia e pela OTAN.

Putin sente que aquilo que é tolerado pelos EUA, principalmente as ingerências militares nos países soberanos, para a Rússia é algo condenado. Não admitirá que a Ucrânia passe para o Oeste. Putin sabe que os Estados Unidos não intervirão militarmente se ele invadir a Ucrânia. Talvez tenha pensado em uma invasão rápida e já organizou reservas em caso de sanções econômicas, cujo alcance no longo prazo ele subestima, mas talvez imagine mesmo que tudo será resolvido no curto prazo. Sem pretender psicologizar, posso imaginar que esse espírito autoritário, para quem as democracias ocidentais são decadentes, que cada vez mais endurece seu regime policial-militar na Rússia, acreditou em 2001, juntamente com Bush, que os Estados Unidos tratariam dignamente seu grande país. Ele tende a ocultar o fato de que suas guerras na Chechênia, suas intervenções na Geórgia e, finalmente, na Ucrânia em 2014 puseram os Estados Unidos e a Europa em estado de alerta. Inicialmente prudente e ardiloso, Putin tornou-se audacioso em 2014 e, doravante, é impelido por uma terrível raiva.

Quando as tropas russas se concentraram na fronteira da Ucrânia, em 1º de março de 2022, Joe Biden fez um discurso de tom intransigente, no qual se encontra uma pequena frase essencial: "nós não faremos a guerra". Mesmo sendo legítima, desequilibrou os Estados Unidos na correlação de forças. Nenhum povo, nenhum governo na Europa considerou fazer a guerra na Ucrânia invadida, apesar dos constantes apelos do presidente Zelenski e das inúmeras tentativas de negociação de Macron com Putin.

A dificuldade de fazer a guerra à guerra

A heroica resistência do presidente Zelenski, de seu governo e do povo ucraniano surpreendeu Putin e provocou nossa admiração. Fez com que Putin abandonasse a mentira da desnazificação e passasse agora a falar de nacionalistas ucranianos.  Sem dúvida, a resistência contribuiu para unificar a Ucrânia democrática e nacional.

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Além disso, pelo menos por um tempo, a guerra de Putin unifica a Europa, em sua reprovação e reação. O Ocidente tenta fazer de tudo, exceto compreender o que constituiria a essência da própria guerra. Uma guerra como esta seria uma catástrofe generalizada que mergulharia a Ucrânia, a Europa e a América numa terrificante nova Guerra Mundial. Em decorrência disso, efetiva-se uma reação apenas econômica de sanções múltiplas e generalizadas (pessoalmente, sou contrário a sanções que atinjam a cultura, a música, o teatro, as artes); depois a reação se amplia por uma ajuda econômica, pelo envio de material militar à Ucrânia, pela organização de um centro de acolhimento para refugiados. E também pela formação de uma legião de voluntários para combater na Ucrânia. Um dos aspectos da tragédia é que não podemos fazer uso da fraqueza nem da força separadamente e que estamos obrigados a navegar entre as duas de maneira incerta.

Dito isso, lembremos que as sanções também atingem os que as executam. A Europa corre o risco de ter falta de gás e outros produtos. Pode até ser que a guerra econômica seja eficaz no longo prazo, mas até lá a Ucrânia terá sido absorvida. A guerra poderia ter efeitos mais amplos na Rússia, empobrecer a população, provocar uma forte oposição que poderia reforçar ou reverter o poder autoritário de Putin.

Qual é e onde se encontra a fronteira entre a guerra econômica, a ajuda armamentista, a intervenção de voluntários e a própria guerra? Os bombardeios, as ruínas, os mortos que, longe de nós, atingiram a Síria, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão, batem às nossas portas.

Aqui irrompe a ameaça tantas vezes repetida de Putin do uso de arma implacável contra os que ameaçassem a Rússia. "Vocês seriam todos bombardeados". Num excesso de raiva, seria ele capaz de passar à ação? De qualquer forma, o acidente de uma guerra que ultrapassaria em horror as duas precedentes Guerras Mundiais não constitui uma impossibilidade.

Até o momento, Kiev não sucumbiu. Macron acaba de fazer um novo e valoroso esforço com Putin, sem resultado. Tudo é incerto, tudo é perigoso. A solução de compromisso aceitável por todos seria uma Ucrânia neutra e federalizada, tendo em vista sua diversidade étnica e religiosa. Essa diversidade é atualmente inacessível.

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Uma regulamentação pacífica da guerra permitiria negociações mais amplas entre a Rússia, os Estados Unidos, a Europa. Não sei se a unidade adquirida durante a crise pela União Europeia se manterá; haverá um elemento novo: o rearmamento alemão, que dará à Alemanha uma hegemonia que não será mais unicamente econômica.  

 Na expectativa de uma hipotética solução, o perigo permanente continua. Como encontrar a via entre a fraqueza culpável e a intervenção irresponsável? De qualquer maneira, como vimos com muita frequência, as intervenções caminham no sentido inverso das intenções e das decisões, tanto no Leste quanto no Oeste.

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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