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A Ciência Política e um olhar sobre os Legislativos

Reforma Política - a mão que apedreja, afaga

Nos Versos Íntimos de Augusto dos Anjos lemos esse trecho:

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Por Humberto Dantas
Atualização:

 

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

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O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

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A mão que afaga é a mesma que apedreja.

 

Ele inspira uma forma de vida. Utilize-o para entender a nossa política e nossa forma de conviver. Primeiro lembre o mantra que motiva alguns: a política corrompe. Quem lá chega, deixa-se levar. O ser que vive entre as feras do Congresso Nacional, torna-se uma delas. Tristeza. E nesse caso, a voz que grita contra, logo arruma uma desculpa para se proteger dos ataques. Tem visto a turma da "nova política" desfazer o que criticava? Ou acompanham velhas práticas? A verdade: tem de tudo. Mas de tudo - coisas boas e más - sempre teve. Nada é novo.

Outra ausência da novidade se repete nos anos ímpares. Estamos cá falando sobre a maldita reforma política. Gerando esperança em quem tem suas mudanças de estimação, e criando instabilidade à luz da realidade. Fatiaram as propostas, mexeram em muito mais coisas do que a inteligibilidade permite calcular e apreender em termos de consequências. Aproveitando o termo, muito dos nossos congressistas, sempre muito convictos por dever de ofício, são na realidade: inconsequentes. Desafiamos UM a nos dizer o que pode ocorrer com nossa lógica de representação se tudo o que está sendo pensado for aprovado. Tristeza.

Pois bem. Terminei hoje um estudo que outros colegas já devem ter feito. Fui olhar para a tão esperada proibição às coligações em eleições proporcionais - essa uma das raras alterações comemoradas em larga escala por quem entende de sistema eleitoral nos últimos anos. O objetivo primeiro, de acordo com documentos oficiais dos relatores, era reduzir o total de partidos políticos representados nas casas parlamentares. Há alguns meses cheguei a dizer: o que resolve isso é a cláusula de desempenho. O fim das coligações está apenas a garantir que o resultado do voto do eleitor se torne mais transparente para ele. Voto no candidato X do partido Y e, no máximo, elejo alguém da mesma legenda. Faz sentido? Para quem é individualista, não. E por isso tanto alucinado olha para o tal Distritão. Mas para quem entende o sentido do termo "representação coletiva de ideias organizadas em agremiações", faz. Mas os partidos são tenebrosos! Eu sei, o cheque sem fundo também é ruim, e nem por isso falamos contra os bancos ou proibimos a venda das canetas que os assinam.

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Tomei as 26 capitais brasileiras como parâmetro e fui olhar se o fim das coligações proporcionais debutante em 2020 serviu de fato para reduzir o total de partidos em casas parlamentares. Veja só o que encontrei: em oito delas houve redução, sendo a mais expressiva encontrada em Rio Branco-AC, com queda de 25% - de doze para nove. Florianópolis-SC, Natal-RN, Teresina-PI e Recife-PE também superaram 15% de queda. Em sete capitais, no entanto: elas por elas, ou seja, o total de legendas em 2020 foi igual a 2016. São, por exemplo, os casos da maior e da menor população entre as capitais - São Paulo-SP (com 18 partidos) e Palmas-TO (14). Por fim, em onze cidades o total de legendas aumentou. Destaque para Salvador-BA, Rio de Janeiro-RJ e Cuiabá-MT com mais de 15% e a campeã Vitória-ES com 44% de aumento - de nove para treze legendas. Conclusão dos desavisados de plantão: a medida não atingiu seu objetivo. O fim das coligações não reduziu o total de partidos e, para muitos, pode ser descartada. Nada disso!

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Primeiro: volto ao ponto que sempre defendi. O fim das coligações organiza melhor o voto, a despeito do total de legendas representadas. Estraga algumas estratégias, mas garante ao eleitor que pensa em partido - e eu sei que devem ser poucos - que seu voto será valorizado no interior daquele conjunto. Mas o problema não é esse.

"Sistema Eleitoral" é um termo sábio. A palavra "sistema" nos leva à ideia de conjunto de elementos organizados, em certa medida harmônico e que carrega consigo lógica de dependência entre seus componentes. E quando se colocou fim nas alianças formais em pleitos proporcionais negociou-se um aspecto que precisa ser trazido ao debate para a compreensão da sistemática do modo como elegemos representantes em pleitos proporcionais, seus resultados e consequências. Faz poucos anos o cálculo do quociente eleitoral carregava consigo uma lógica de cláusula de barreira. Explico: partido ou coligação que não atingisse o mínimo equivalente a UMA vaga proporcional estava automaticamente eliminado do jogo, a despeito dos desempenhos individuais de seus membros. Ao proibir a aliança, apedrejou-se a estratégia de partidos parasitários que dependiam do desempenho de outros para ingressarem nos legislativos - parafraseando a obra de Augusto dos Anjos. Mas a decisão de permitir que qualquer postulante participasse das distribuições das sobras serviu de: afago. Sobre o escarro das coligações proporcionais, o beijo generoso do fim da cláusula de barreira via quociente eleitoral. E, assim, qualquer legenda passou a participar das sobras, distribuídas pelo cálculo das maiores médias. E o que se colheu aqui?

Em apenas duas capitais todos os partidos representados nas Câmaras a partir das eleições de 2020 estariam garantidos a despeito do fim da lógica de barreira - Recife-PE e Florianópolis-SC. Mas lembremos de que ambas tiveram redução no total de legendas em relação a 2016 superiores a 15%. Nos outros 24 casos, se o atingimento do quociente eleitoral tivesse sido mantido para seguir a lógica de conquista de espaço, teríamos garantida a redução do total de partidos que foi utilizada como justificativa para a adoção da medida. Vitória-ES é a campeã: em 2016 tirou das urnas nove partidos, subiu para treze em 2020, e deveria ter apenas, e tão somente apenas, três legendas representadas. Palmas-TO, Aracaju-SE e Boa Vista-RR teriam redução superior à metade dos partidos se a reforma que apedrejou não tivesse também afagado.

Conclusão: o fim das coligações é moralmente importante para a compreensão do sistema, mas teria razão maior de existir se não viesse acompanhada dos tradicionais atenuantes. Isso era o possível? Triste, pois ficou longe demais do ideal, e em certa medida neutralizou uma decisão importante. E aqui está o ponto central: no Senado se aprovou semana passada, em projeto do senador Carlos Favaro (PSD-MT), a volta da exigência de atingimento do quociente eleitoral, mas sendo a Câmara a maior interessada em mudanças desse tipo, e a mais impactada por elas, o que ocorrerá? Por lá se fala no contrário: volta das coligações - mas falam-se outras aberrações confusas, como o Distritão. O fato é: se a avaliação sobre o impacto da medida impeditiva de alianças for observar os números sem considerar tudo o que colocamos acima, certamente faltará senso de análise e percepção - algo esperado no comportamento de muitos.

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