Do outro lado desse mecanismo estão as supremas cortes. O atual desenho de divisão dos três poderes com uma Suprema Corte forte não foi desenhado por Montesquieu, para quem o Judiciário era quase nada, mas por James Madison em seus artigos federalistas, escritos com Alexander Hamilton e John Jay. Eles deram ao Judiciário uma função dentro da arena política, a de ser o controle contra-majoritário. Ou seja, a voz das ruas ecoaria no Congresso, mas não necessariamente na Suprema Corte, que teria o árduo trabalho de proteger a democracia dela própria. Explico: Como democracia é, antes de um procedimento, um valor per si, um ideal, um senso de liberdade, qualquer mecanismo tendente a aboli-la, mesmo que seguindo a vontade da maioria (plebiscito, por exemplo) seria papel da Suprema Corte enfrentá-lo e derrubá-lo, protegendo a democracia da vontade insatisfeita da maioria momentânea.
Mas não foram os federalistas que criaram o controle difuso de constitucionalidade. Foi no famoso caso Marbury vs. Madison que a Suprema Corte norte-americana decidiu não aceitar normas que ferissem a Constituição. Como no sistema de common law (direito costumeiro) o Judiciário pode inovar na ordem jurídica (e faz todo o sentido, já que sofrem accountability vertical por parte da comunidade, que escolhe os juízes dos condados) a própria Corte construiu um novo entendimento.
Diferentemente, no sistema de civil law (adotado no Brasil) o Judiciário não pode inovar na ordem jurídica. Ele não sofre nenhum tipo de accountability, a não ser o correcional pela via das corregedorias e do CNJ. Por conta de o recrutamento ser via concurso público (e não por eleição), o Judiciário tornou-se um poder isolado, extremamente independente e insulado do restante da burocracia. O mecanismo criado pela jurisprudência do caso Marbury vs. Madison foi incorporado em nossa primeira Constituição republicana em 1891. E seguiu nas demais, recebendo em 1988 o reforço do controle concentrando criado por Hans Kelsen na Áustria da década de 1920.
Ora, se nos Estados Unidos onde o Judiciário está submetido ao controle popular a Suprema Corte exerce controle contra-majoritário, no Brasil, ao passo que a magistratura é insulada, a Suprema Corte (STF) deveria proteger a Constituição, mesmo que a voz das ruas queira ignorá-la para satisfazer um desejo: Lula preso ou Lula livre.
O debate sobre a prisão em segunda instância deveria ser estritamente técnico: estaria o princípio da inocência presumida mitigando o princípio da eficiência? Ao se garantir ao réu todos os recursos cabíveis, poderia ainda assim o Estado punir o criminoso, ou ficaria frustrada a punição em função da prescrição? Em 2016, o Supremo Tribunal Federal ignorou o texto constitucional que afirma que a prisão por decisão condenatória só poderia ser efetivada após o trânsito em julgado, ou seja, quando não cabem mais recursos. Acertaram o problema, erraram o tratamento. A questão é que a quantidade de recursos, que após a segunda instância podem se transformar em meramente protelatórios, pode impedir que o Estado puna em função da prescrição. Mas não é ignorando a Constituição que se resolve esse imbróglio, pois o precedente pode levar a ignorar outros mandamentos constitucionais. É possível resolver o problema alterando a legislação infraconstitucional, como o próprio Código de Processo Penal.
Entretanto, em 2016 Lula não estava preso. Eduardo Cunha e Cia estavam na mira popular e para o STF era conveniente encarcerá-los, principalmente depois de terem afastado Cunha da presidência da Câmara, algo completamente inconstitucional. Uma inconstitucionalidade a mais para satisfazer a massa, não teria problema.
Todavia, em 2019, com Lula preso, a situação muda. Não se trata mais de um embate entre a inocência presumida e a eficiência da Justiça. Trata-se apenas de Lula livre ou Lula preso. E fica a insegurança jurídica: qual o próximo ponto a ser ignorando da Constituição? A depender da ocasião pode ser a liberdade de expressão. Como prever ou saber? Já que está escrito pode não ser lido, fica a estabilidade institucional à deriva, o que é paradoxal uma vez que instituições são criadas para diminuir incertezas, não o contrário.