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A Ciência Política e um olhar sobre os Legislativos

PEC 188/2019: o início do fim do pacto federativo?

*Texto escrito em co-autoria com Raphael Torrezan, doutorando em Economia na UNESP/Araraquara.

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Por Bruno Souza da Silva
Atualização:

Vamos ser francos! No final das contas, poucos estão preocupados com a democracia brasileira, a soberania popular e a representação política em sua ponta, nas cidades. As palavras de ordem são exclusivamente pautadas no "economiquês". Fala-se em melhoria de indicadores, metas fiscais e concorrência em mercados regulados. Se os cofres públicos estivessem abarrotados de recursos, sequer pensaríamos no pacto federativo e, em especial, no município: incômodo ente em nossa tradição política nacional centralizadora. É preciso nos encontrarmos mergulhados em crise para refletirmos a respeito das nossas instituições e, principalmente, sobre a política local. Talvez poucos se lembrem, mas a sociedade inseriu no texto constitucional em 1988 a perspectiva de avanço e consolidação democrática a partir da efetivação do princípio da descentralização das decisões políticas. No entanto, pouco mais de 30 anos depois, a ideia do "mais Brasil, menos Brasília" está alicerçada não no fortalecimento da vida política local, mas na sua desintegração.

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O Projeto de Emenda à Constituição nº 188/2019 tem como um dos seus objetivos a extinção dos municípios com arrecadação própria inferior a 10% de toda sua receita e com população menor que 5.000 habitantes. De antemão, cabe salientar que durante a transição governamental o atual Ministro da Fazenda, Paulo Guedes, frisou que aumentaria a descentralização dos entes federados, algo que parece ter sido esquecido no campo das ideias. A principal justificativa para a apresentação da PEC é que esta reduziria o tamanho da máquina pública, melhoraria a eficiência dos municípios, além de diminuir os custos com estruturas administrativas e as despesas com os Legislativos Municipais. No entanto, permanece a dúvida: resolver os problemas fiscais passa simplesmente pela destruição dos municípios pequenos?

É fundamental que o pacto federativo seja repensado, mas argumentos desta natureza denotam a falta de estudo e de entendimento da realidade federativa brasileira. Isso fica evidente ao se destacar alguns pontos. O primeiro deles diz respeito ao equívoco de se relacionar, única e exclusivamente, eficiência administrativa com tamanho dos municípios e arrecadação própria. Segundo levantamento realizado pela Conselho Federal de Administração (CFA) parte dos 1.200 municípios que seriam extintos apresentam índices similares ou superiores a outras localidades as quais não sofreriam qualquer impacto caso a PEC fosse aprovada tal como encaminhada ao Senado. Comparativamente, os índices com saúde, educação, gestão fiscal e transparência não oscilam quando se comparam municípios pequenos com outros maiores, apontando que não há qualquer evidência clara a respeito dos entes com menos de 5.000 habitantes serem meros apêndices federativos altamente dispendiosos para os contribuintes.

Ademais, um município pode possuir uma receita total alta e uma arrecadação tributária relativamente baixa. Ao passo que na composição total das receitas se somam transferências federais e estaduais variadas. Desta forma, o uso deste cálculo matemático como parâmetro torna-se completamente inócuo. Afinal, um município pode receber uma vultosa cota-parte de ICMS o qual, no "computo geral", diluirá proporção da arrecadação própria na composição do índice. Inclusive, esta relação é comum em municípios pequenos, mas que detém atividades geradoras de grande valor adicionado (como a presença de uma usina de cana-de-açúcar ou de energia elétrica na localidade, por exemplo). Além disso, deve-se salientar que 70% dos municípios da região Sudeste não possuem arrecadação superior a 10% da receita total. Isso porque estamos falando de uma região que concentra boa parte da riqueza nacional. Logo, ao invés de extinguir os entes subnacionais praticamente sem arrecadação, a União deveria estimular todos os municípios brasileiros a aumentarem suas receitas próprias, considerando que as prefeituras, com contribuição do Legislativo, detêm diversos mecanismos para tal.

A PEC 188/2019 também não esclarece como ficará a repartição do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) após a absorção de um município por outro. Esse "limbo" na proposta pode levar a perdas de receita deste "novo município". Afinal, a soma entre os municípios aumentará a população, mas não necessariamente o repasse do fundo. Ou seja, aumentam-se as demandas, mas não as receitas. Destaca-se ainda o fato dos autores da PEC desconsiderarem o contexto demográfico brasileiro. Imagine a união de dois municípios com núcleos urbanos distantes, com as vezes dezenas de quilômetros separando seus centros.  Como seria o acesso destes habitantes a bens e serviços públicos muitas vezes concentrados em uma única localidade?  Haverá de fato uma economia nas despesas administrativas ou a "junção" equivocada apenas aumentará os custos com infraestrutura? Será levado em conta as razões pelas quais politicamente um antigo distrito optou por se emancipar do seu município-mãe ou compraremos automaticamente a ideia ventilada por aí segundo a qual tudo é conveniência política dos responsáveis por sua criação?

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O grande ponto merecedor de destaque e reflexão é como as reformas anunciadas pelo governo se amparam em argumentos frágeis vinculando-se a noções como "diminuir despesas", ou ainda, que toda a culpa estaria nas estruturas administrativas locais, inclusive nomeando os Legislativos Municipais como um dos vilões dos desequilíbrios financeiros subnacionais. Todo este cenário aponta para o total despreparo no trato da questão federativa e dos alicerces estabelecidos pela Constituição de 1988, levando a desequilíbrios regionais, rompendo com a lógica cooperativa entre os entes e acentuando o esfacelamento federativo em curso. Para quem olha as planilhas de gastos e investimentos os argumentos oficiais podem até seduzir. Mas cuidado com o canto da sereia! Agora que a PEC está nas mãos dos congressistas, por mais que muitos de nós os vejamos com péssimos olhos, vale a pena dar uma chance e ouvi-los, uma vez que tais representantes chegaram até Brasília pedindo votos pelo Brasil profundo e não apenas pelas redes sociais. Senão, já sabemos: bye bye federação.

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