Voltando ao impeachment, no Brasil, a Constituição de 1988 estabeleceu que o Presidente da República pode ser removido do cargo, caso cometa crimes de responsabilidade, e atribuiu à lei a definição destes crimes. A lei em vigor é a 1.079, elaborada em 1950. São quase 65 hipóteses de crimes de responsabilidade, dentre as quais podemos verificar:
- Negligenciar a arrecadação das rendas, impostos e taxas, bem como a conservação do patrimônio nacional (art. 11, inciso 5);
- Deixar de tomar, nos prazos fixados, as providências determinadas por lei ou tratado federal e necessário a sua execução e cumprimento (art. 8, inciso 8);
- Proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.
Há um detalhe. A negligência é uma das modalidades da culpabilidade. Logo, não cabe falar em crimes de responsabilidade, exclusivamente na modalidade dolosa. Crimes de responsabilidade admitem não apenas o dolo e a culpa, mas também o crime tentado, como diz Nelson Nery Júnior em sua obra Constituição Federal Comentada.
É louvável o esforço de parte do mundo jurídico de se opor ao impeachment, mas eles deveriam, há muito tempo, terem lutado para modificar a lei dos crimes de responsabilidade, uma vez que, com tantas hipóteses genéricas e imprecisas, acaba por deixar o Presidente da República vulnerável ao Legislativo, configurando não um impeachment, mas um voto de desconfiança disfarçado. Pior. A Constituição atribui exclusivamente ao Presidente da Câmara a prerrogativa de autorizar ou não a abertura do processo de impeachment. Se Bruce Ackerman, em The New Separation of Powers (A Nova Separação dos Poderes), já chamava a atenção para o fato de que, nos Estados Unidos para ser plenamente legiferante, o partido que elegeu o Presidente tem de eleger os presidentes das duas casas legislativas, no Brasil, para que o Presidente não fique vulnerável à impopularidade e a outras insatisfações, deve eleger um presidente da Câmara mais confiável do que o próprio Ministro-Chefe da Casa Civil.
Quando o legislador constituinte de 1988 elaborou o desenho institucional brasileiro, baseou-se também em outras instituições estrangeiras. Por exemplo, nos Estados Unidos, o vice-presidente da República é, também, o Presidente do Senado. Havendo processo de impeachment do Presidente da República americano, quando do julgamento material no Senado, o presidente daquela Casa não preside a sessão e, sim, o presidente da Suprema Corte. Este mecanismo visa afastar o beneficiário (vice-presidente) de interferir no impeachment do titular do cargo. O desenho brasileiro é idêntico, mesmo que o vice-presidente da república no Brasil não seja presidente de nenhuma das casas do Congresso.
A cópia pura e simples de mecanismos de outros países pode não surtir o mesmo resultado original. Perceba que nos Estados Unidos, devido ao bipartidarismo, o Presidente da República e seu vice são do mesmo partido. No Brasil, isso dificilmente ocorre. Nós não temos nenhuma proteção contra o partido do vice-presidente ter maioria em ambas as casas, exercer a presidência delas e ter o poder de remover o titular, beneficiando o próprio partido.
É necessário um novo redesenho do procedimento de impeachment, não há dúvidas. Nós estamos gerando um resultado extremamente incoerente: a presidente está sendo questionada por ter praticado irregularidades fiscais, que também foram praticadas pelo seu vice. Na linha sucessória estão um senador e um deputado acusados de corrupção em diversos processos, do mesmo partido do vice-presidente e que se beneficiam diretamente do impeachment. O princípio da impessoalidade foi totalmente violado, quando da autorização, sem contar as manobras regimentais. Tudo isso, talvez, possa ser causa de anulação do processo, trazendo à arena decisória o Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, houve um pesadelo perfeito para operacionalizar um impeachment como voto de desconfiança: resultados econômicos desastrosos, baixa popularidade e um inimigo político na presidência da Câmara e, possivelmente, no Palácio do Jaburu. As instituições estão funcionando a pleno vapor, não há ruptura nem quebra. Mas, como o juízo é político, nunca foi jurídico, o governo precisa se esforçar para convencer 172 deputados de que não merece sair do poder. E, para isso, não adianta falar juridiquês, é política pura. É mostrar que é capaz de superar a crise. Do contrário, vai haver impedimento, mesmo que na essência o impeachment não seja pra isso, pois pela nossa legislação é.
O que dá esperança aos que se opõem ao impeachment é o Supremo Tribunal Federal. Felizmente, vivemos sob o Princípio da Soberania Constitucional, não sob o da Soberania do Parlamento. Em virtude disso, o STF pode e deve interferir nos atos dos legislativos sempre que estes se opuserem às normas constitucionais, principalmente aos seus princípios. Uma interpretação mais analítica e profunda dos dispositivos constitucionais feita pela nossa Suprema Corte pode balizar todo o processo de impeachment na Câmara, evitando as manobras de seu presidente. O caso brasileiro se encaixa no que Tom Ginsburg disse a respeito do empoderamento judicial: dar mais poder ao Judiciário segue uma lógica de insurance (seguro), ao diminuir os riscos da incerteza e do conflito.