Grosso modo, cultura são valores e práticas compartilhadas entre os atores de um determinado grupo. Um importante conjunto de obras contribui para o debate da cultura política sob a perspectiva da sociologia e antropologia no Brasil entre os anos de 1998 e 2010. A Coleção Antropologia da Política é composta de 30 de temas tão diversos como pode ser a política, abarcando desde processos eleitorais em comunidades camponesas até órgãos de cúpula de instância federal. Destaco dois trabalhos sobre o Congresso Nacional que foram resultados de etnografias.
Etnografia, especialidade dos antropólogos, é uma metodologia que se usa para tentar entender comunidades, eventos e grupos de forma profunda, ainda que sem pretensões generalizadoras. Via de regra, um pesquisador ao fazer seu desenho de pesquisa se depara com uma escolha: quanto mais consegue se aprofundar nas minúcias do seu objeto de pesquisa, menos ele consegue generalizar seus resultados para outros casos. É o que chamamos de validade interna e externa. Assim, quando analisamos profundamente o parlamento de um país em um momento, podemos fazer uma descrição altamente acurada, mas essa descrição sozinha pode não ajudar a descrever parlamentos de outros países ou mesmo esse mesmo parlamento em outros momentos. Por outro lado, podemos analisar uma regra específica em diversos parlamentos em diferentes épocas que nos ajude a prever os resultados dessa instituições em outros momentos. Ambos os tipos de trabalhos são necessários para se compreender fenômenos e para que as ciências sociais possam cumprir seu papel de informar a sociedade e reduzir as incertezas.
Dois trabalhos da coleção que citei são especialmente interessantes para compreender o funcionamento e os valores que permeavam os comportamentos dos parlamentares na década de 1990, quando as pesquisas foram realizadas. O primeiro resultou no livro Em Nome das "Bases", de Marcos Bezerra, que teve como enfoque a relação entre os políticos "nacionais" e "locais" no processo de elaboração e execução do orçamento federal. O autor observa a dificuldade em se distinguir relações públicas e pessoais, bem como as práticas que seriam consideradas legítimas ou corruptas. Depois, a obra A Honra da Política, de Carla Teixeira, procura entender o lugar normativo do conceito de decoro parlamentar. A pesquisa deu origem ainda ao artigo Honra moderna e política em Max Weber, onde a autora analisa os casos de perda de mandato por quebra de decoro parlamentar de 1949 a 1994.
A tipificação jurídica da quebra de decoro está presente tanto na Constituição quanto nos regimentos do Senado, Câmara e Comum. Pode resultar em penas que vão de advertência verbal a perda do mandato. O conceito é particularmente interessante para entender o conjunto valorativo que rege o comportamento dos parlamentares em âmbito federal. Isto é, ao estabelecer o que seria considerado impróprio para o comportamento de um Deputado, os parlamentares também estabelecem uma prescrição do tipo de comportamento que é esperado e entendido como digno de "honra" e "dignidade". O conceito de "honra", portanto, seria um guarda-chuvas que abarca todo um conjunto de valores hierarquizados e contextualizados, isto é, entendidos como razoáveis naquele lugar e naquele momento.
A conclusão de Teixeira (1999) é que as especificidades do que definiria o "decoro parlamentar" teriam necessariamente ser entendidas dentro do contexto de grupo e época. O resultado de um julgamento de quebra de decoro parlamentar funcionaria como um termômetro para chegar mais perto de entender a hierarquização de valores que guiam o comportamento de um determinado parlamento num determinado momento. A honra seria, portanto, o critério central que define o juízo de valor da conduta política.
A subjetividade do critério do decoro foi conferida aos parlamentares pelo legislador por entender que estes são parte de um Poder independente e não deve sofrer interferências inoportunas de outros. É preciso atentar ainda para nefasta possibilidade do uso da regra branca para perseguição política e os riscos democráticos desse cenário. Por outro lado, cabe observar que a não manifestação dos parlamentos após ações altamente questionáveis de parlamentares estabelece que tais atitudes são aceitáveis e não configuram quebra de decoro. Os parlamentares e partidos precisam sentir o peso do que estão normalizando e é papel da sociedade cobrar e fiscalizar.