Governo socializa perdas e capitaliza lucros

O pacote lançado ontem pela presidente Dilma Rousseff, com pompa e circunstância, como parte da solução para a saúde, carrega um aspecto recorrente nas ações de seu governo - o prato feito que contorna o debate prévio de tema de considerável teor polêmico.

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Por João Bosco Rabello
Atualização:

Para uma medida que altera substancialmente as regras para a formação de médicos e sua atuação profissional no mercado, deveria ser precedido de ampla discussão.

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Mal se sabia que o governo tinha na gaveta proposta que, por sua amplitude, não faz supor ter sido produzida da noite para o dia - e, se o foi, tanto pior. Tudo o que se sabia era a determinação do Executivo de importar médicos para suprir a escassez de profissionais da saúde no atendimento em áreas distantes e carentes do mais básico sistema de prevenção. A surpresa, porém, não ajuda, antes obstrui a boa tramitação da proposta.

Certamente, a ideia foi a de exibir capacidade de reação às cobranças claras da sociedade no setor, um dos mais complexos e ineficientes entre os classificados como serviços essenciais à população. Mas não só isso: ele reproduz a marca do governo que responde pelo isolamento em que a queda nas pesquisas submeteu a presidente Dilma - a decisão unilateral.

Partido tão caracterizado pelo debate interno, que exagera a ponto de dificultar ações objetivas, o PT é impositivo no governo, como demonstra a tentativa de democracia direta embutida na proposta do plebiscito. A proposta da saúde, sem consulta às instituições representativas dos médicos (de que se tenha notícia), revela que, além do Congresso, o governo evita também a discussão setorizada que possa representar risco às suas certezas.

Esse traço autoritário, comum em governos de esquerda (embora vendam o contrário), foi agravado pelos protestos de rua que levaram o Planalto a eleger culpados para uma crise que é, na essência, de gestão e, embora alcance as instâncias estaduais, faz sentir seu peso e desgaste mais sobre o governo federal. Não completamente sem razão, porque o atual governo completa uma década no poder.

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A imagem que o governo passa hoje é a de um exército entrincheirado no Planalto Central, disparando artilharia pesada contra tudo e todos que julga potenciais obstáculos ao que o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), definiu adequadamente como "nosso projeto".  O fez o candidato petista à sucessão de Rui Falcão na presidência do partido, como alerta à base aliada para o grau de altíssimo risco em que entrou o plano de permanência no poder.

Mas como o pronome possessivo indica, "nosso projeto" é o do PT, posto que nenhum parceiro do governo dele se considera parte, o que transforma o apelo do deputado pela unidade da base numa revelação de temor exclusiva de seu partido. O PMDB, para ficar no aliado mais expressivo, saboreia a crise do parceiro.

O pacote anunciado ontem tem até seus méritos. Não responde em curto prazo aos clamores por melhores serviços, mas exibe um lado objetivo de ataque a uma das causas, buscando a qualificação da formação do profissional médico. Mas ao custo de ampliar em dois anos a obtenção de um diploma que já custa hoje seis anos de investimento ao estudante de medicina.

Também pode ser positiva a obrigatoriedade da prestação de serviços no SUS, mas não haveria outro modo de estabelecê-la por um prazo menor? Essa é uma indagação que já se encontra nas edições de hoje dos jornais que repercutem as medidas junto aos especialistas, ou seja, os médicos. Num debate prévio, que o Congresso promoverá, certamente, ela será repetida, entre muitas outras.

Corre o risco o governo de o Congresso ocupar o espaço desse debate com a classe médica, aprimorando o projeto e capitalizando politicamente seus efeitos.  Trazendo para seu lado os representantes da categoria desconsiderados pelo Planalto.

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Se fosse uma medida que dispensasse a ação congressual, outra certeza estaria lançada: a de que o projeto acabaria judicializado.O Planalto distribui o ônus da crise e tenta capitalizar sozinho as soluções, estratégia que tem tudo para dar errado. Ou, como se diz no jargão político, não corre o risco de dar certo.

 

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