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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Trabalho decente como limite ético para a geração de novos empregos

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Por Redação
Atualização:

Felipe Fernandes Pinheiro, Bacharel em Direito (PUC-SP). Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho (FGV-SP). Mestre em Direito do Trabalho (PUC-SP). Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (PUC-SP). Membro da Comissão de Jovens Juristas da Sociedade Internacional de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Advogado

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O direito, fenômeno das ciências morais, está sujeito a um constante processo de transformação, nos limites da capacidade humana de valorar os fatos ocorridos na sociedade de seu tempo. Afinal, como fato social, o direito não pode ser concebido fora da sociedade e seu objetivo é ordenar a coletividade na direção do bem comum.

Nota-se, de antemão, que o direito lida com uma problemática de difícil solução, na medida em que seu produto - a norma jurídica - é o resultado do encontro entre fato e valor, elementos pertencentes a dois mundos absolutamente distintos e, no âmbito da lógica, até mesmo contraditórios: os mundos do "ser" e do "dever ser".

O mundo do "ser" representa tudo aquilo que é. Sua expressão é encontrada no mundo fenomênico, casuístico, escravo da necessidade de ser. É o mundo da natureza, onde algo simplesmente é, foi ou será. Por sua vez, o mundo do "dever ser" é o mundo da liberdade humana, da racionalidade. É um mundo que só faz sentido no âmbito da existência humana, afinal, aos olhos da natureza, nada pode ser diferente daquilo que é.

Ocorre que a antítese fundamental entre natureza e espírito, ou aquilo que é e o que deve ser, é superada, no plano objetivo, pela existência humana. Vale dizer, ao mesmo tempo em que os seres humanos habitam um mundo próprio, repleto de regras e ordenações jurídicas estabelecidas na medida do bem comum (um representativo daquilo que deve ser), também se veem limitados pelos efeitos fenomênicos inerentes ao mundo da natureza (aquilo que efetivamente é). Afinal, nem sempre o "dever ser" traduz efetividade histórica e social a ponto de ser confirmado no reino do "ser". Como, então, explicar a comunicação entre fato e valor, dois mundos absolutamente distintos, por meio da norma jurídica?

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Uma solução encontrada ainda no início do século XX pelo filósofo alemão Gustav Radbruch, expoente da Escola de Marburgo, foi explicar o direito como uma ciência cultural, já que é através da cultura que o mundo humano e livre do "dever ser" se encontra com o mundo frio e casuístico da natureza, o mundo do "ser".

A cultura, afirma Radbruch, não é puro valor, "mas antes uma mescla de humanidade e barbárie"[1], uma manifestação que decorre necessariamente de fatos relacionados a valores. Trata-se, portanto, de um fenômeno que sintetiza o processo humano de transformação da natureza cega em algo dotado de valor[2].

Realçar o aspecto cultural da civilização realmente se mostra uma boa solução para esse conflito lógico e é isso que justifica que cada nação seja organizada a partir de um ordenamento jurídico próprio e que os Estados disponham de sua soberania - a qual, espera-se, tem como limite os direitos humanos.

Contudo, ao mesmo tempo em que esse aspecto cultural do direito soluciona o conflito lógico entre os reinos do "ser" e do "dever ser", nos traz um conflito, dessa vez relacionado à universalização de direitos e à identificação de valores transcendentais. Em relação ao mundo do trabalho, esse conflito se confirma na medida em que não há consenso sobre a consolidação de direitos trabalhistas mínimos universais, normas fundamentais válidas em qualquer tempo e espaço e que tutelem o trabalho como uma atividade inerente à natureza humana, portanto, com regras mínimas estabelecidas na mesma medida para todos os seres humanos.

No Brasil, o aspecto cultural do direito vem sendo acompanhado, de forma mais acentuada a partir de 2017, de uma tendência à desconstrução do direito do trabalho e à precarização do direito social. Nota-se, a partir de levantamentos realizados durante e após a pandemia da Covid-19, que o reaquecimento do mercado de trabalho, no Brasil, vem sendo liderado pela criação de postos de trabalho precários[3][4], com salário médio de contratação 5,6% menor do que o registrado em anos anteriores[5], e com redução de 8% na quantidade de ocupados com rendimentos mensais superiores a dois salários mínimos[6].

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Aos olhos contemporâneos, parece prevalecer a compreensão de que melhor é ter um trabalho ruim do que não ter um trabalho, enquanto, na realidade, é evidente que não há nada melhor do que gozar de uma boa ocupação.

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Diante desse cenário, para contornar a lógica de precarização na criação de novos postos de trabalho, é preciso que se estabeleça um paradigma ético. Na realidade, basta rememorar um paradigma ético que já existe: a ética do trabalho decente.

O trabalho decente, segundo o conceito da OIT, é um trabalho produtivo e de qualidade, adequadamente remunerado e exercido em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade[7].

Trata-se de condição fundamental para a superação da pobreza, para a redução das desigualdades sociais e promoção da justiça social. O trabalho decente é uma forma de impulsionar a distribuição dos benefícios decorrentes do crescimento econômico e garantir que todos tenham acesso a sua parcela na geração de riqueza.

O conceito está amparado em quatro pilares estratégicos, que nada mais são do que diretrizes da OIT e sintetizam seu objetivo prioritário: a promoção do trabalho decente no mundo.

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O primeiro pilar do trabalho decente é o respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho, que compreendem os direitos catalogados na Declaração Relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho de 1998. O objetivo é que todos tenham condições hígidas de trabalho e possam viver com dignidade pelo exercício de seu ofício.

Os direitos fundamentais no trabalho são: a Eliminação do Trabalho Forçado ou Obrigatório (Convenção n. 29/1930 e Convenção n. 105/1957 da OIT); a Liberdade Sindical e de Associação e Direito à Negociação Coletiva (Convenção n. 87/1948 e Convenção n. 98/1949 da OIT); a Abolição do Trabalho Infantil (Convenção n. 138/1973 e Convenção n. 182/1999 da OIT); e a Eliminação da Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (Convenção n. 100/1951 e Convenção n. 111/1958 da OIT).

O segundo pilar é a geração de empregos de qualidade. Isso significa que o trabalho decente não envolve apenas a criação de empregos em quantidade, mas também em qualidade. Significa também que a OIT não está preocupada apenas com os "empregados", grupo de trabalhadores que cumprem alguns requisitos formais, mas com todos os trabalhadores, e seu objetivo é integrar aqueles que estão à margem do mercado formal em sua rede de proteção.

O terceiro pilar envolve a extensão da proteção social. Essa proteção tem como objetivo garantir amparo às pessoas que se encontrem em situação vulnerável, quer por estarem desempregadas, em situação de maternidade, acometidas de doenças ou velhice. Este pilar estratégico, portanto, reforça a preocupação da OIT com a efetivação das garantias proporcionadas pelos direitos sociais e a realização integral do ser humano no trabalho.

O quarto e último pilar do trabalho decente é a promoção do diálogo social. Esse objetivo estratégico visa dar voz e representatividade aos trabalhadores e reforçar o característico tripartismo da OIT entre governo, trabalhadores e empregadores. Para reforçar o diálogo social, não se estimula somente a via sindical, mas todo tipo de negociação, consulta e troca de informações que melhore as condições de vida e as relações entre as partes interessadas. A criação de canais alternativos que incluam os trabalhadores informais, autônomos e domésticos, inclusive, é altamente estimulada.

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A atuação conjunta de todos esses pilares sintetiza o objetivo comum da OIT com a promoção do trabalho decente para todos.

Como visto, o trabalho decente, trabalho produtivo e de qualidade, adequadamente remunerado e exercido em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade, introduz um conceito deliberadamente aberto, justamente por compreender o aspecto cultural do direito e permitir que cada Estado proponha as soluções ao mercado de trabalho que julgar adequadas de acordo com sua própria realidade. Com isso, se assegura que cada nação tome providências de acordo com as concepções, experiências e valores do seu próprio povo, ideia semelhante à doutrina alemã do volkgeist, ou o "espírito do povo", introduzida, ainda no século XIX, pela Escola Histórica do Direito.

No entanto, ao mesmo tempo em que o conceito da OIT se mostra pouco rígido, afirma-se com segurança que o trabalho decente é restrito o suficiente para não se ajustar a qualquer determinação ou se moldar ao desejo de qualquer governante. Vale dizer, os requisitos que concretizam o trabalho decente estão bem estabelecidos no conceito proposto pela OIT.

No Brasil, vem se construindo o entendimento de que um trabalho produtivo é aquele que gera renda suficiente para o trabalhador e sua família viverem de forma digna, enquanto um trabalho de qualidade é aquele que respeita os direitos mínimos que asseguram a dignidade do próprio trabalhador.

Um trabalho em condições de liberdade é aquele em que, minimamente, se assegura o direito fundamental à liberdade de profissão, ou seja, deve ser assegurada a ausência de coação no trabalho e a possibilidade de livremente se vincular ou desvincular de um trabalho; o direito fundamental à liberdade de associação, que consiste na liberdade para que as pessoas se reúnam mediante a criação de um ente coletivo para a concretização de objetivos comuns; e as diretrizes sobre a abolição do trabalho forçado ou obrigatório, dispostas nas Convenções n. 29 e 105 da OIT.

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Um trabalho em condições de equidade é aquele que assegura, minimamente, condições e oportunidades iguais para todos, observados os critérios da igualdade formal e material em todos os aspectos laborais e extra laborais; e as diretrizes sobre a eliminação da discriminação em matéria de emprego ou ocupação, dispostas nas Convenções n. 100 e n. 111 da OIT.

Um trabalho em condições de segurança é aquele que preserva as condições de saúde e segurança do trabalhador dentro do meio ambiente laboral, enquanto gozar de uma ocupação produtiva, assim como fora do ambiente de trabalho, caso presente alguma vulnerabilidade que o afaste de sua ocupação, seja ela relacionada a questões de saúde, desemprego ou aposentadoria. Nesse aspecto, é tutelado, minimamente, o direito constitucional ao meio ambiente saudável, do qual o meio ambiente de trabalho certamente faz parte; a proteção social por meio da assistência e previdência social; além das diretrizes sobre a eliminação do trabalho infantil, dispostas nas Convenções n. 138 e n. 182 da OIT.

Um trabalho com justa remuneração é aquele pelo qual o trabalhador recebe uma contraprestação proporcional à riqueza que seu trabalho gera e que essa remuneração seja suficiente para que ele e sua família tenham condições de superar a pobreza e viver com dignidade. Seria, minimamente, a garantia de um salário-mínimo, amparado no próprio conceito de justiça, ideia central do direito.

Por fim, todas essas condições fazem com o que o trabalho seja exercido em condições de dignidade. A dignidade da pessoa humana é o cerne da Constituição Federal brasileira e vincula a si todas as demais normas, mesmo as que não a preveem expressamente e assegura, portanto, que o direito fundamental social ao trabalho previsto no ordenamento jurídico brasileiro não aceita nenhum tipo de trabalho que não seja um trabalho digno.

Por tudo isso, afirma-se que a criação de postos de trabalho que não atendam às condições do trabalho decente representam um artifício para solucionar tão somente o problema estatístico do desemprego, mas não é o suficiente para solucionar o problema social ocasionado pelo desemprego e pelo subemprego.

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Compreender a importância de se proporcionar um trabalho digno para todos é o ápice do amadurecimento da relação humana com o trabalho. Afinal, não há progresso sem justiça social e os benefícios da globalização somente serão plenamente fruídos se revertidos também em favor do desenvolvimento socioeconômico. Essa é a luta do trabalho decente.

O trabalho decente é um objetivo. E um objetivo é, ao mesmo tempo, uma meta a se alcançar e um limite que não pode ser ultrapassado.

Notas e Referências

[1] Radbruch, G. (2010). Filosofia do direito. São Paulo. 2ª Edição. Editora WMF Martins Fontes. pp. 7-8.

[2] Reale, Miguel. (2014). Fundamentos do direito. São Paulo. 4ª Edição. Migalhas. p. 246.

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[3] Rodrigues, D., Ferrari, H. (2021, Novembro 6). 83% dos empregos formais criados em 2021 pagam até 2 salários mínimos. Poder 360 de https://www.poder360.com.br/economia/90-dos-empregos-formais-criados-neste-ano-pagam-de-1-a-2-salarios-minimos/

[4] Barrocal, A. (2019, Setembro 7). Emprego precário e salário estagnado travam crescimento. Carta Capital de https://www.cartacapital.com.br/economia/emprego-precario-e-salario-estagnado-travam-crescimento/

[5] Cartacapital. (2022, Julho 5). Salário médio de trabalhador com carteira assinada cai 5,6% em 1 ano. Carta Capital de https://www.cartacapital.com.br/economia/salario-medio-de-trabalhador-com-carteira-assinada-cai-56-em-1-ano/

[6] De Chiara, M, Cotrim, C. (2022, Janeiro 22). Empregos voltam com salário menor e levam à precarização do mercado de trabalho. O Estado de São Paulo de https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,empregos-salario-menor-precarizacao-mercado-de-trabalho-desemprego,70003957969?utm_source=estadao:app)

[7] OIT. Trabalho decente. Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm

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