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 Riscos: uma discussão que necessita de lócus estratégico no Brasil do Século XXI

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Por Redação
Atualização:

Flávia Cristina Canêdo Ramos é Mestre em Governança e Desenvolvimento pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e servidora pública federal.

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Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) e autor do Livro "Vale Quanto Pesa. Um estudo dos impactos do controle na gestão", da Editora Fórum.

 

A pandemia do novo Coronavirus afastou os acadêmicos facebookianos da temática de corrupção, para abrir vagas para novos teóricos de redes sociais sobre os riscos aos quais estamos submetidos, permeados pelas crenças que ignoram os conceitos mais básicos no lidar com a incerteza. Essa realidade se faz presente em um cenário que enseja reflexões sobre a urgência da entrada da questão dos riscos na agenda governamental, transcendendo, um tanto, a visão minimalista de riscos corporativos, ou ainda, os feudos tradicionais nos quais essa pauta sempre prosperou. 

Ulrich Beck, sociólogo alemão responsável por diversos estudos, poucos traduzidos no Brasil, dentre os quais destaca-se  a obra  "A sociedade de risco" (2010),  realizou importantes contribuições à teoria social, abordando os efeitos da modernização e a possibilidade de (auto)destruição, já que a formatação dessa nova sociedade produz externalidades que afetam a si própria, tendo o risco como balizador de rumos das discussões hegemônicas.

 Trazendo especialmente a temática ambiental como pano de fundo, Beck nos mostra como a sociedade está sujeita aos chamados grandes riscos globais,  riscos esses que, em muitas situações, não podem ser transferidos ou evitados, cujos impactos são coletivos e democráticos, e que apesar de variar na intensidade, não escolhe origem, classe social, território ou algum segmento específico da população, atingindo a todos transversalmente. Ideias que encontram nesse 2020 um terreno fértil para a sua discussão.  

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O Século XXI traz a emergência da percepção desses riscos no cotidiano da sociedade, dos quais podemos destacar os desastres ambientais (como a escassez hídrica, furacões, destruição de áreas verdes, poluição e outros); os acidentes químicos, nucleares; as questões epidemiológicas; ou mesmo os conflitos civis armados e o terrorismo. Problemas que parecem distantes, mas que como nos mostra a pandemia da Covid-19, tem rebatimentos no minimalismo das organizações, ensejando a seguinte questão: Qual a relação dos ensinamentos de Beck com o processo de gerenciamento de riscos operado no âmbito das organizações públicas?

Para Beck, a sociedade de risco resulta na fabricação de incertezas e os riscos dependem da observação de cada indivíduo, sendo que muitos riscos da modernidade acabam por escapar à capacidade perceptiva humana. Uma nova sociedade, uma nova etapa da modernidade, na qual os riscos afetam transversalmente regiões e classes sociais, no sentido de pautar essa nova forma de organização, frente a forma como essas ameaças são percebidas. Os medos e sonhos do cidadão globalizado são balizadores dessa nova época. 

Nessa nova lógica social, defende-se que o Estado, individualmente ou em ações multilaterais, teria um papel relevante na resposta aos riscos, por meio da concepção e implementação de ações coletivas que visariam a mitigar os efeitos de sua concretização ou mesmo prevenir que se materializem. Os riscos que são captados e inseridos na agenda pública, por vezes permeiam wicked problems(1), requerendo para seu tratamento uma visão global. Não seria a tragédia de hoje relacionada à Covid-19 um reflexo de um desses riscos globais que se materializa?

Assim, nesse desiderato, tem-se que as políticas públicas são estruturadas em arranjos que muitas vezes perpassam as estruturas de uma única organização, com configurações heterogêneas e complexas. De modo inverso, o processo de gerenciamento de riscos vem sendo conduzido nos limites fronteiriços de cada Instituição, cada qual com sua política, métodos e formatações próprias. Os desafios que se colocam relacionam-se aos reflexos desses processos particulares na gestão dos riscos sociais e na manutenção do foco para geração de benefício público, e vice versa.

Sobre o assunto, a literatura internacional(2) apresenta importantes debates que abordam a necessidade de uma emancipação estratégica, que permita um realinhamento do processo de gestão de riscos no setor público, de modo a evitar que os riscos sejam analisados unicamente pela ótica regulatória, de accountability ou de controle, com um foco na salvaguarda preventiva. Isso porque, uma lente enviesada e autocentrada pode resultar na concentração de riscos focados na sobrevivência da Instituição e em práticas que possam criar externalidades nocivas ao próprio papel do Estado, em especial pela falta de uma visão de todo. Mas, como fazer isso, se a gestão de riscos entra na agenda nacional pela pena dos órgãos de controle (SOUZA et al., 2020)? 

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Nesse sentido, poderia ocorrer, por exemplo, no caso de uma política regulatória com fins arrecadatórios, mas que não observe na sua gestão de riscos e no delineamento de suas ações que a sua população alvo é composta também por público atendido por política assistencial, criando efeitos não esperados nesta última. O velho desafio da transversalidade. Ou em uma ação pública que reveja regras ou parâmetros para gestão hídrica ou ambiental, mas que deixe de atentar para os possíveis efeitos inesperados de suas decisões no abastecimento municipal ou na manutenção de determinadas condições ambientais em aglomerados populacionais específicos. Pode ocorrer, ainda, nas automatizações de serviços públicos que visam à otimização de procedimentos, mas que não consideram uma possível exclusão digital de parte de seu público-alvo, não importando sua representatividade; ou mesmo em alterações operacionais em sistemas aéreos ou ferroviários na tentativa de reduzir algum índice negativo, mas que acabem por estressar o sistema rodoviário, ocasionando aumento de ocorrências danosas neste. 

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A abordagem dos riscos transcende a publicação de uma política por cada organização, que olhe apenas para o seu latifúndio, demandando uma visão estratégica e de transversalidade que harmonize não só ações e riscos institucionais, mas que também dê conta de grandes riscos globais, na conceituação de Beck. Acreditamos que a pandemia de Covid-19 trouxe à tona essa fragilidade no que se refere ao trato da incerteza, e não adianta jogar a conta no chamado "Cisne Negro", sob o risco de virarmos e perdurarmos apenas como patinhos feio. 

O que se percebe, então, em todas as exemplificações, é a premente necessidade de que o Estado (lato sensu), na mitigação dos riscos da sociedade, atue de maneira transversal e global, articulada e estrategicamente. Salutar então que o processo de gerenciamento de riscos atente e capture os aspectos amplos, integrados, políticos e mutáveis das políticas públicas, sob pena de a organização, na tentativa de mitigar seus próprios riscos institucionais, acabe por introduzir efeitos e repercussões involuntárias, que prejudiquem outras ações ou mesmo criem riscos sociais, em um "cada um por si" que pode não ter os efeitos desejados. 

Dessa forma, na intenção de evitar que a gestão de riscos seja aplicada de maneira individualista, limitada ou com foco puramente procedimental, é necessário que haja clareza quanto às entregas e o benefício público esperado, mas também uma compreensão multidimensional, que capte a natureza dinâmica da atuação governamental na implementação de suas políticas. Incorporar reflexões acerca do arranjo de governança do objeto analisado, e dos atores e políticas que afetam ou podem ser afetados pelos seus resultados, com foco direcionado à inovação, aproxima-se do verdadeiro papel da gestão de riscos na construção de capacidades e geração de valor. 

Trazer o risco para a pauta das políticas públicas é sair do mundo determinista de séculos atrás e trazer a incerteza para sentar a mesa, enxergando o contexto, a estrutura, e as salvaguardas, elementos essenciais na discussão dos riscos, mas com a visão adicional aqui trazida, a qual necessita de um certo grau de articulação em nível estratégico. Precisa ter dono, pauta e agenda, e talvez tenhamos espaços crescendo nesse sentido, o que poderia ser catalisado pela pandemia, com espaços já estabelecidos (BRAGA; OLIVEIRA, 2020).

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Relembrando Beck, não há como evitar o que não pode ser previsto. Assim, a superação da topografia institucional e o aperfeiçoamento contínuo das metodologias de gestão de riscos incorpora novas dimensões analíticas, integrando objetivos, qualificando resultados e facilitando o efetivo gerenciamento do risco social. Para isso, a gestão de riscos precisa subir um ou dois andares, e quem sabe a materialização de um dos riscos globais, como é a pandemia, possa ser o degrau necessário. 

Referências: 

BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2010, 384 p.

BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo. OLIVEIRA, Patricia Alvares de Azevedo. Avaliação de Políticas Públicas: o cão e o dono. Blog "Gestão, Política e Sociedade"> Estadão. 23/11/2020. Disponível em:  https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/avaliacao-de-politicas-publicas-o-cao-e-o-dono/. Acesso em 10.Dez.2020.

ROTHSTEIN, H. The institutional origins of risk: A new agenda for risk research. Journal of Risk Research, volume 8, issue 3, abril 2006. p 215-221.

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SOUZA, F. S. R. N. de, BRAGA, M. V. de A., CUNHA, A. S. M. da, & SALES, P. D. B. de. Incorporation of international risk management standards into federal regulations. Brazilian Journal of Public Administration54(1), Janeiro de 2020. Pp 59-78. Disponível em :  http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/80970. Acesso em 10.Dez.2020.

 

Notas:

  • Wicked problems são problemas incompletos, contraditórios e com requisitos mutáveis, as soluções difíceis.
  • A exemplo dos autores Henry Rothstein; Michael Power; Christopher Hood; Douglas Hubbard; dentre outros.

 

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