Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

O mundo em que vivíamos já não existe-- por enquanto ou não mais?


Por Redação

Daniel Pereira Andrade é professor de sociologia da EAESP-FGV

"Não dá para querer voltar a uma realidade que já não existe mais", sentenciou Atila Iamarino. A afirmação do biólogo jogou uma pá de cal na pretensão de certos empresários de antecipar a suspensão da quarentena e chamou a atenção para as profundas transformações em curso. No curto período da pandemia, ocorreram mudanças surpreendentes no discurso de políticos e economistas, com ampla repercussão midiática. A pandemia mostrou que existem sim alternativas, inaugurando possibilidades concretas de políticas econômicas e sociais de grande impacto. Mas não tenhamos ilusões: a pandemia cria igualmente instrumentos para aprofundar a precarização do trabalho, para ampliar privilégios do setor financeiro e até mesmo para uma gestão militarizada da sociedade. A consolidação de uma ou outra tendência é uma questão estritamente política. Não há nenhuma garantia de que as mudanças positivas vão se perpetuar e de que o Brasil e o mundo sairão dessa crise com um modo de regulação mais solidário e sustentável.

Vejamos o exemplo da pauta econômica. Ela era dominada até então pelo ajuste fiscal, tendo em Paulo Guedes o seu grande herói. O samba de uma nota só era repetido à exaustão na grande imprensa, com um "consenso forjado" que excluía toda voz dissonante do debate público. Mas o resultado frustrante do PIB do último ano, confirmando a mais lenta retomada econômica da história, foi um duro golpe na fórmula da austeridade. O horizonte da pandemia suspendeu as reformas. Paulo Guedes ainda tentou salvar seu programa chantageando o Congresso. Blefou ser a agenda de reformas a melhor resposta para o corona vírus. Sabia que essa talvez fosse sua última janela de oportunidade.

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Com a efetiva chegada da pandemia, a situação modificou-se radicalmente. Os economistas liberais que defendiam os cortes passaram a expor a necessidade do gasto público. O investimento do Estado tornou-se a nova tábua de salvação frente à tragédia humanitária e à paralisação econômica que condenaria informais, autônomos e empresários à ruína, arrastando consigo uma massa de desempregados. De fevereiro para março, o dogma econômico parece ter virado do avesso. Foi um salto do "não há alternativa" para o "só há outra alternativa". Se um extraterrestre chegasse desavisadamente ao nosso planeta, acreditaria que somos todos keynesianos (talvez porque nas crises de fato o sejamos).

Na classe política, alguns exemplos chegam a ser anedóticos. Rodrigo Maia, defensor da agenda do mercado, enquadrou os financistas quando estes pressionaram pelo fim da quarentena. Maia foi direto ao ponto ao dizer que os investidores deveriam arcar com as perdas, já que assumiram o risco na Bolsa de Valores. Outro exemplo foi o deputado Alexandre Frota. Ex-membro da extrema-direita bolsonarista, agora defende em sua conta do twitter a taxação de grandes fortunas e de lucros e dividendos. Aliás, foi o senador Plínio Valério do PSDB-AM, enfatizo, do PSDB, que propôs o projeto de lei de taxação de grandes fortunas para bancar as contas da saúde pública. Boa parte da direita parece ter virado socialdemocrata.

Do dia para a noite, foi redescoberta a importância do Estado para salvaguardar a vida da população, particularmente dos mais vulneráveis. Além da inegável relevância do SUS, outras políticas sociais estão sendo rapidamente adotadas, como um amplo programa de renda mínima, a inclusão de beneficiários no Bolsa Família e programas de manutenção dos empregos. Foram criadas linhas de crédito cujos juros cobrados de pequenos e médios empresários caíram a níveis recentemente inimagináveis. Outras vocações do Estado de repente emergiram, alterando a percepção da sociedade depois de uma década escutando de Think Tanks neoliberais que ele era um roubo que distorcia o paraíso dos livre-mercados. O Estado não é um bloco único, ele é heterogêneo no seu funcionamento e pode operar de diferentes maneiras, algumas delas emancipadoras.

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No entanto, diante desse quadro que parece confirmar que a realidade anterior não apenas não existe mais, como está completamente invertida, já há os que se apressam em nos dizer que o novo mundo deve ser temporário. Insistem que todas essas medidas tenham que ceder novamente lugar às políticas de austeridade assim que o período mais crítico passar. Que o mundo de Paulo Guedes, com seus resultados medíocres, é o único possível.

É preciso lembrar que, na crise de 2008, também se imaginava que faríamos a passagem para outro modo de regulação mais humano, mas, ao invés disso, ocorreu uma radicalização do neoliberalismo. O neoliberalismo já se mostrou capaz de instrumentalizar a seu favor as crises que ele mesmo desencadeia. Por isso, essa não é uma possibilidade descartada no cenário atual. Vários economistas liberais já advertem que, depois dos gastos emergenciais, será preciso fazer um ajuste fiscal ainda mais radical de modo a equilibrar as contas públicas. A isso se somam medidas ainda em estudo que facilitam a redução de salários e permitem a suspensão temporária dos contratos de trabalho. Por fim, o agravamento da pandemia pode desencadear formas militares de gestão da circulação das pessoas, criando as condições de possibilidade de um controle autoritário.

Nada está garantindo. Não há nenhuma necessidade de que vamos sair dessa crise com um novo modelo mais inclusivo e igualitário ou se retornaremos ao regime anterior mais radicalizado e autoritário. De qualquer modo, certamente não será mais a mesma realidade em que vivíamos. O que ocorrerá na sequência da pandemia é incerto. Hoje, dispositivos práticos de distribuição de renda e de seu financiamento estão praticamente prontos e parte da população descobriu a possibilidade de agir em comum e de construir um destino compartilhado. As novas políticas econômicas e sociais podem ser consolidadas, desafiando os dogmas vigentes, mas elas também podem ser rapidamente desmontadas, promovendo a volta ao mundo sem esperanças da austeridade, com suas promessas sempre adiadas e seus privilégios perpetuados.

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A decisão será política e o futuro está em aberto.

Daniel Pereira Andrade é professor de sociologia da EAESP-FGV

"Não dá para querer voltar a uma realidade que já não existe mais", sentenciou Atila Iamarino. A afirmação do biólogo jogou uma pá de cal na pretensão de certos empresários de antecipar a suspensão da quarentena e chamou a atenção para as profundas transformações em curso. No curto período da pandemia, ocorreram mudanças surpreendentes no discurso de políticos e economistas, com ampla repercussão midiática. A pandemia mostrou que existem sim alternativas, inaugurando possibilidades concretas de políticas econômicas e sociais de grande impacto. Mas não tenhamos ilusões: a pandemia cria igualmente instrumentos para aprofundar a precarização do trabalho, para ampliar privilégios do setor financeiro e até mesmo para uma gestão militarizada da sociedade. A consolidação de uma ou outra tendência é uma questão estritamente política. Não há nenhuma garantia de que as mudanças positivas vão se perpetuar e de que o Brasil e o mundo sairão dessa crise com um modo de regulação mais solidário e sustentável.

Vejamos o exemplo da pauta econômica. Ela era dominada até então pelo ajuste fiscal, tendo em Paulo Guedes o seu grande herói. O samba de uma nota só era repetido à exaustão na grande imprensa, com um "consenso forjado" que excluía toda voz dissonante do debate público. Mas o resultado frustrante do PIB do último ano, confirmando a mais lenta retomada econômica da história, foi um duro golpe na fórmula da austeridade. O horizonte da pandemia suspendeu as reformas. Paulo Guedes ainda tentou salvar seu programa chantageando o Congresso. Blefou ser a agenda de reformas a melhor resposta para o corona vírus. Sabia que essa talvez fosse sua última janela de oportunidade.

Com a efetiva chegada da pandemia, a situação modificou-se radicalmente. Os economistas liberais que defendiam os cortes passaram a expor a necessidade do gasto público. O investimento do Estado tornou-se a nova tábua de salvação frente à tragédia humanitária e à paralisação econômica que condenaria informais, autônomos e empresários à ruína, arrastando consigo uma massa de desempregados. De fevereiro para março, o dogma econômico parece ter virado do avesso. Foi um salto do "não há alternativa" para o "só há outra alternativa". Se um extraterrestre chegasse desavisadamente ao nosso planeta, acreditaria que somos todos keynesianos (talvez porque nas crises de fato o sejamos).

Na classe política, alguns exemplos chegam a ser anedóticos. Rodrigo Maia, defensor da agenda do mercado, enquadrou os financistas quando estes pressionaram pelo fim da quarentena. Maia foi direto ao ponto ao dizer que os investidores deveriam arcar com as perdas, já que assumiram o risco na Bolsa de Valores. Outro exemplo foi o deputado Alexandre Frota. Ex-membro da extrema-direita bolsonarista, agora defende em sua conta do twitter a taxação de grandes fortunas e de lucros e dividendos. Aliás, foi o senador Plínio Valério do PSDB-AM, enfatizo, do PSDB, que propôs o projeto de lei de taxação de grandes fortunas para bancar as contas da saúde pública. Boa parte da direita parece ter virado socialdemocrata.

Do dia para a noite, foi redescoberta a importância do Estado para salvaguardar a vida da população, particularmente dos mais vulneráveis. Além da inegável relevância do SUS, outras políticas sociais estão sendo rapidamente adotadas, como um amplo programa de renda mínima, a inclusão de beneficiários no Bolsa Família e programas de manutenção dos empregos. Foram criadas linhas de crédito cujos juros cobrados de pequenos e médios empresários caíram a níveis recentemente inimagináveis. Outras vocações do Estado de repente emergiram, alterando a percepção da sociedade depois de uma década escutando de Think Tanks neoliberais que ele era um roubo que distorcia o paraíso dos livre-mercados. O Estado não é um bloco único, ele é heterogêneo no seu funcionamento e pode operar de diferentes maneiras, algumas delas emancipadoras.

No entanto, diante desse quadro que parece confirmar que a realidade anterior não apenas não existe mais, como está completamente invertida, já há os que se apressam em nos dizer que o novo mundo deve ser temporário. Insistem que todas essas medidas tenham que ceder novamente lugar às políticas de austeridade assim que o período mais crítico passar. Que o mundo de Paulo Guedes, com seus resultados medíocres, é o único possível.

É preciso lembrar que, na crise de 2008, também se imaginava que faríamos a passagem para outro modo de regulação mais humano, mas, ao invés disso, ocorreu uma radicalização do neoliberalismo. O neoliberalismo já se mostrou capaz de instrumentalizar a seu favor as crises que ele mesmo desencadeia. Por isso, essa não é uma possibilidade descartada no cenário atual. Vários economistas liberais já advertem que, depois dos gastos emergenciais, será preciso fazer um ajuste fiscal ainda mais radical de modo a equilibrar as contas públicas. A isso se somam medidas ainda em estudo que facilitam a redução de salários e permitem a suspensão temporária dos contratos de trabalho. Por fim, o agravamento da pandemia pode desencadear formas militares de gestão da circulação das pessoas, criando as condições de possibilidade de um controle autoritário.

Nada está garantindo. Não há nenhuma necessidade de que vamos sair dessa crise com um novo modelo mais inclusivo e igualitário ou se retornaremos ao regime anterior mais radicalizado e autoritário. De qualquer modo, certamente não será mais a mesma realidade em que vivíamos. O que ocorrerá na sequência da pandemia é incerto. Hoje, dispositivos práticos de distribuição de renda e de seu financiamento estão praticamente prontos e parte da população descobriu a possibilidade de agir em comum e de construir um destino compartilhado. As novas políticas econômicas e sociais podem ser consolidadas, desafiando os dogmas vigentes, mas elas também podem ser rapidamente desmontadas, promovendo a volta ao mundo sem esperanças da austeridade, com suas promessas sempre adiadas e seus privilégios perpetuados.

A decisão será política e o futuro está em aberto.

Daniel Pereira Andrade é professor de sociologia da EAESP-FGV

"Não dá para querer voltar a uma realidade que já não existe mais", sentenciou Atila Iamarino. A afirmação do biólogo jogou uma pá de cal na pretensão de certos empresários de antecipar a suspensão da quarentena e chamou a atenção para as profundas transformações em curso. No curto período da pandemia, ocorreram mudanças surpreendentes no discurso de políticos e economistas, com ampla repercussão midiática. A pandemia mostrou que existem sim alternativas, inaugurando possibilidades concretas de políticas econômicas e sociais de grande impacto. Mas não tenhamos ilusões: a pandemia cria igualmente instrumentos para aprofundar a precarização do trabalho, para ampliar privilégios do setor financeiro e até mesmo para uma gestão militarizada da sociedade. A consolidação de uma ou outra tendência é uma questão estritamente política. Não há nenhuma garantia de que as mudanças positivas vão se perpetuar e de que o Brasil e o mundo sairão dessa crise com um modo de regulação mais solidário e sustentável.

Vejamos o exemplo da pauta econômica. Ela era dominada até então pelo ajuste fiscal, tendo em Paulo Guedes o seu grande herói. O samba de uma nota só era repetido à exaustão na grande imprensa, com um "consenso forjado" que excluía toda voz dissonante do debate público. Mas o resultado frustrante do PIB do último ano, confirmando a mais lenta retomada econômica da história, foi um duro golpe na fórmula da austeridade. O horizonte da pandemia suspendeu as reformas. Paulo Guedes ainda tentou salvar seu programa chantageando o Congresso. Blefou ser a agenda de reformas a melhor resposta para o corona vírus. Sabia que essa talvez fosse sua última janela de oportunidade.

Com a efetiva chegada da pandemia, a situação modificou-se radicalmente. Os economistas liberais que defendiam os cortes passaram a expor a necessidade do gasto público. O investimento do Estado tornou-se a nova tábua de salvação frente à tragédia humanitária e à paralisação econômica que condenaria informais, autônomos e empresários à ruína, arrastando consigo uma massa de desempregados. De fevereiro para março, o dogma econômico parece ter virado do avesso. Foi um salto do "não há alternativa" para o "só há outra alternativa". Se um extraterrestre chegasse desavisadamente ao nosso planeta, acreditaria que somos todos keynesianos (talvez porque nas crises de fato o sejamos).

Na classe política, alguns exemplos chegam a ser anedóticos. Rodrigo Maia, defensor da agenda do mercado, enquadrou os financistas quando estes pressionaram pelo fim da quarentena. Maia foi direto ao ponto ao dizer que os investidores deveriam arcar com as perdas, já que assumiram o risco na Bolsa de Valores. Outro exemplo foi o deputado Alexandre Frota. Ex-membro da extrema-direita bolsonarista, agora defende em sua conta do twitter a taxação de grandes fortunas e de lucros e dividendos. Aliás, foi o senador Plínio Valério do PSDB-AM, enfatizo, do PSDB, que propôs o projeto de lei de taxação de grandes fortunas para bancar as contas da saúde pública. Boa parte da direita parece ter virado socialdemocrata.

Do dia para a noite, foi redescoberta a importância do Estado para salvaguardar a vida da população, particularmente dos mais vulneráveis. Além da inegável relevância do SUS, outras políticas sociais estão sendo rapidamente adotadas, como um amplo programa de renda mínima, a inclusão de beneficiários no Bolsa Família e programas de manutenção dos empregos. Foram criadas linhas de crédito cujos juros cobrados de pequenos e médios empresários caíram a níveis recentemente inimagináveis. Outras vocações do Estado de repente emergiram, alterando a percepção da sociedade depois de uma década escutando de Think Tanks neoliberais que ele era um roubo que distorcia o paraíso dos livre-mercados. O Estado não é um bloco único, ele é heterogêneo no seu funcionamento e pode operar de diferentes maneiras, algumas delas emancipadoras.

No entanto, diante desse quadro que parece confirmar que a realidade anterior não apenas não existe mais, como está completamente invertida, já há os que se apressam em nos dizer que o novo mundo deve ser temporário. Insistem que todas essas medidas tenham que ceder novamente lugar às políticas de austeridade assim que o período mais crítico passar. Que o mundo de Paulo Guedes, com seus resultados medíocres, é o único possível.

É preciso lembrar que, na crise de 2008, também se imaginava que faríamos a passagem para outro modo de regulação mais humano, mas, ao invés disso, ocorreu uma radicalização do neoliberalismo. O neoliberalismo já se mostrou capaz de instrumentalizar a seu favor as crises que ele mesmo desencadeia. Por isso, essa não é uma possibilidade descartada no cenário atual. Vários economistas liberais já advertem que, depois dos gastos emergenciais, será preciso fazer um ajuste fiscal ainda mais radical de modo a equilibrar as contas públicas. A isso se somam medidas ainda em estudo que facilitam a redução de salários e permitem a suspensão temporária dos contratos de trabalho. Por fim, o agravamento da pandemia pode desencadear formas militares de gestão da circulação das pessoas, criando as condições de possibilidade de um controle autoritário.

Nada está garantindo. Não há nenhuma necessidade de que vamos sair dessa crise com um novo modelo mais inclusivo e igualitário ou se retornaremos ao regime anterior mais radicalizado e autoritário. De qualquer modo, certamente não será mais a mesma realidade em que vivíamos. O que ocorrerá na sequência da pandemia é incerto. Hoje, dispositivos práticos de distribuição de renda e de seu financiamento estão praticamente prontos e parte da população descobriu a possibilidade de agir em comum e de construir um destino compartilhado. As novas políticas econômicas e sociais podem ser consolidadas, desafiando os dogmas vigentes, mas elas também podem ser rapidamente desmontadas, promovendo a volta ao mundo sem esperanças da austeridade, com suas promessas sempre adiadas e seus privilégios perpetuados.

A decisão será política e o futuro está em aberto.

Daniel Pereira Andrade é professor de sociologia da EAESP-FGV

"Não dá para querer voltar a uma realidade que já não existe mais", sentenciou Atila Iamarino. A afirmação do biólogo jogou uma pá de cal na pretensão de certos empresários de antecipar a suspensão da quarentena e chamou a atenção para as profundas transformações em curso. No curto período da pandemia, ocorreram mudanças surpreendentes no discurso de políticos e economistas, com ampla repercussão midiática. A pandemia mostrou que existem sim alternativas, inaugurando possibilidades concretas de políticas econômicas e sociais de grande impacto. Mas não tenhamos ilusões: a pandemia cria igualmente instrumentos para aprofundar a precarização do trabalho, para ampliar privilégios do setor financeiro e até mesmo para uma gestão militarizada da sociedade. A consolidação de uma ou outra tendência é uma questão estritamente política. Não há nenhuma garantia de que as mudanças positivas vão se perpetuar e de que o Brasil e o mundo sairão dessa crise com um modo de regulação mais solidário e sustentável.

Vejamos o exemplo da pauta econômica. Ela era dominada até então pelo ajuste fiscal, tendo em Paulo Guedes o seu grande herói. O samba de uma nota só era repetido à exaustão na grande imprensa, com um "consenso forjado" que excluía toda voz dissonante do debate público. Mas o resultado frustrante do PIB do último ano, confirmando a mais lenta retomada econômica da história, foi um duro golpe na fórmula da austeridade. O horizonte da pandemia suspendeu as reformas. Paulo Guedes ainda tentou salvar seu programa chantageando o Congresso. Blefou ser a agenda de reformas a melhor resposta para o corona vírus. Sabia que essa talvez fosse sua última janela de oportunidade.

Com a efetiva chegada da pandemia, a situação modificou-se radicalmente. Os economistas liberais que defendiam os cortes passaram a expor a necessidade do gasto público. O investimento do Estado tornou-se a nova tábua de salvação frente à tragédia humanitária e à paralisação econômica que condenaria informais, autônomos e empresários à ruína, arrastando consigo uma massa de desempregados. De fevereiro para março, o dogma econômico parece ter virado do avesso. Foi um salto do "não há alternativa" para o "só há outra alternativa". Se um extraterrestre chegasse desavisadamente ao nosso planeta, acreditaria que somos todos keynesianos (talvez porque nas crises de fato o sejamos).

Na classe política, alguns exemplos chegam a ser anedóticos. Rodrigo Maia, defensor da agenda do mercado, enquadrou os financistas quando estes pressionaram pelo fim da quarentena. Maia foi direto ao ponto ao dizer que os investidores deveriam arcar com as perdas, já que assumiram o risco na Bolsa de Valores. Outro exemplo foi o deputado Alexandre Frota. Ex-membro da extrema-direita bolsonarista, agora defende em sua conta do twitter a taxação de grandes fortunas e de lucros e dividendos. Aliás, foi o senador Plínio Valério do PSDB-AM, enfatizo, do PSDB, que propôs o projeto de lei de taxação de grandes fortunas para bancar as contas da saúde pública. Boa parte da direita parece ter virado socialdemocrata.

Do dia para a noite, foi redescoberta a importância do Estado para salvaguardar a vida da população, particularmente dos mais vulneráveis. Além da inegável relevância do SUS, outras políticas sociais estão sendo rapidamente adotadas, como um amplo programa de renda mínima, a inclusão de beneficiários no Bolsa Família e programas de manutenção dos empregos. Foram criadas linhas de crédito cujos juros cobrados de pequenos e médios empresários caíram a níveis recentemente inimagináveis. Outras vocações do Estado de repente emergiram, alterando a percepção da sociedade depois de uma década escutando de Think Tanks neoliberais que ele era um roubo que distorcia o paraíso dos livre-mercados. O Estado não é um bloco único, ele é heterogêneo no seu funcionamento e pode operar de diferentes maneiras, algumas delas emancipadoras.

No entanto, diante desse quadro que parece confirmar que a realidade anterior não apenas não existe mais, como está completamente invertida, já há os que se apressam em nos dizer que o novo mundo deve ser temporário. Insistem que todas essas medidas tenham que ceder novamente lugar às políticas de austeridade assim que o período mais crítico passar. Que o mundo de Paulo Guedes, com seus resultados medíocres, é o único possível.

É preciso lembrar que, na crise de 2008, também se imaginava que faríamos a passagem para outro modo de regulação mais humano, mas, ao invés disso, ocorreu uma radicalização do neoliberalismo. O neoliberalismo já se mostrou capaz de instrumentalizar a seu favor as crises que ele mesmo desencadeia. Por isso, essa não é uma possibilidade descartada no cenário atual. Vários economistas liberais já advertem que, depois dos gastos emergenciais, será preciso fazer um ajuste fiscal ainda mais radical de modo a equilibrar as contas públicas. A isso se somam medidas ainda em estudo que facilitam a redução de salários e permitem a suspensão temporária dos contratos de trabalho. Por fim, o agravamento da pandemia pode desencadear formas militares de gestão da circulação das pessoas, criando as condições de possibilidade de um controle autoritário.

Nada está garantindo. Não há nenhuma necessidade de que vamos sair dessa crise com um novo modelo mais inclusivo e igualitário ou se retornaremos ao regime anterior mais radicalizado e autoritário. De qualquer modo, certamente não será mais a mesma realidade em que vivíamos. O que ocorrerá na sequência da pandemia é incerto. Hoje, dispositivos práticos de distribuição de renda e de seu financiamento estão praticamente prontos e parte da população descobriu a possibilidade de agir em comum e de construir um destino compartilhado. As novas políticas econômicas e sociais podem ser consolidadas, desafiando os dogmas vigentes, mas elas também podem ser rapidamente desmontadas, promovendo a volta ao mundo sem esperanças da austeridade, com suas promessas sempre adiadas e seus privilégios perpetuados.

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