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O Judiciário e a democracia

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Por Redação
Atualização:

Maria Laura de Souza Coutinho, Doutora em Administração Pública e Governo (FGV - EAESP)

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Os jornais norte-americanos noticiaram que o Presidente John Biden, cumprindo uma promessa de campanha, criou uma comissão bipartidária para discutir alterações no desenho institucional da Suprema Corte. Na atualidade, após três nomeações feitas por Donald Trump, a Corte constitucional norte-americana conta com uma maioria conservadora. Com isso, conquistas importantes, como a permissão ao aborto, estão sob ameaça. Discute-se ou o aumento do número de membros da Corte, o que daria a possibilidade de Biden de nomear membros mais alinhados a pautas progressistas, ou fixação de um mandato para os ministros, que nas regras atuais permanecem no cargo até a morte.

Em seu artigo de 2006, "O argumento central contra o controle de constitucionalidade", Jeremy Waldron, professor de Direito na Universidade de Nova York, já havia chamado a atenção para o risco de transferir ao Judiciário a decisão de questões difíceis que uma sociedade precisa enfrentar. A judicialização traz o risco, como Waldron previu, de um grupo que ascende ao poder momentaneamente manter a capacidade de ditar o que é aceitável ou não por um tempo maior em razão da nomeação de um número significativo de integrantes da Corte constitucional, que são responsáveis por dizer o que a Constituição, diante de sua linguagem aberta, permite ou não.

O fenômeno da judicialização é explicado por uma série de fatores. Um deles é a opção por entrincheirar certos direitos na Constituição, retirando a possibilidade de sua alteração no processo democrático. O objetivo central é evitar o que Madison e Hamilton denominavam uma tirania da maioria. A partir da decisão do caso Brown vs Board of Education, quando a Suprema Corte determinou ser inconstitucional a segregação de negros nos espaços públicos, o Judiciário passou a ser acionado não só para proteger minorias de perseguições, mas também para que ele atuasse a fim de garantir direitos que, por diversas razões, não tinham suficiente apoio para prosperar nos canais políticos, isto é, no Legislativo e Executivo.

O recurso ao Judiciário passou a ser visto como uma opção estratégica de grupos de pressão, enquanto e o diálogo e a mobilização política perderam espaço, em uma tendência de desvalorização do processo democrático de tomada de decisão. Esse é um dos principais argumentos que Waldron traz para sustentar que a judicialização é perigosa. Dado que a unanimidade é uma utopia, o processo pelo qual se toma uma decisão é tão importante quanto a decisão em si, e a democracia representativa, apesar de seus inúmeros problemas, é o processo de tomada de decisão que pode produzir os resultados mais legítimos. Transferir a decisão para o Judiciário, um Poder protegido do controle popular, implica abdicar o poder de autodeterminação.

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Nesse sentido, um dos pontos daqueles favoráveis à reforma da Suprema Corte é que a configuração atual não representa o que pensa a maioria dos norte-americanos, quando, na realidade, é exatamente esse o sentido do controle de constitucionalidade, ou seja, proteger certas decisões do processo democrático.

A situação enfrentada nos Estados Unidos é um alerta aos brasileiros. Jair Bolsonaro deve nomear mais três ministros para o STF. A recente decisão do ministro Kássio Nunes sobre a possibilidade de realização de cultos diante das medidas preventivas para a contenção da pandemia de COVID-19 são sinais claros de que haverá, no mínimo, uma maior polarização na Corte. Soma-se a isso o fato de que a nomeação de ministros jovens abre a possibilidade de termos durante décadas membros do STF alinhados a um conservadorismo radical.

A reforma da Constituição deve ser a última opção a se considerar e há muito o que ser feito antes que tal medida se torne necessária. Uma delas é a valorização do Legislativo. Segundo dados do Instituto Ideia Big Data divulgados no início de 2018, em evento do Brazilian Institute do Wilson Center, órgão que auxilia o Congresso norte-americano em relação a decisões de política exterior, 79% dos brasileiros não se lembravam do nome dos candidatos a deputado e senador em quem haviam votado em 2014. Se não se lembram em quem votaram, não podem, sequer, avaliar a atuação daqueles que receberam o seu voto. Assim, a avaliação do Legislativo é dominada por julgamentos simplistas de que "político é tudo igual".

O processo democrático implica a negociação e, quase sempre, concessões mútuas. Em outras palavras, o resultado pode não ser tão bom quanto o que se obteria em uma ação judicial. Contudo, abdicar desse processo em troca de um resultado mais favorável, pode, no longo prazo, trazer consequências muito graves, como observamos hoje.

 

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