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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

O governo Bolsonaro e a (não) prevenção da fome

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Por Redação
Atualização:

Thiago Lima, Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB. Membro do Instituto Fome Zero

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Passados praticamente quatro anos do atual governo temos condições mais objetivas para avaliar o projeto que a coalizão que assumiu o comando do país em 2018 aplicou para a área de combate e prevenção à fome. Não se trata de especulação ou de narrativas. Trata-se de dinheiro empenhado. Como se diz na ciência política, se alguém quer saber os reais interesses dos agentes políticos, deve-se seguir o dinheiro. O empenho do dinheiro público demonstra as prioridades. Assim, numa eleição, os eleitores têm a oportunidade de avaliar como o orçamento foi empenhado e o que isso diz sobre as reais prioridades de quem governou.

Se o texto de um projeto - que é um plano imaginado para o futuro - pode aceitar qualquer coisa, o histórico do empenho orçamentário ajuda a construir, mais solidamente, o que foi o passado. Um dado melhor ainda seria o do orçamento executado, ou seja, o dinheiro gasto dentro do empenhado, mas não temos isso disponível no momento.

Os dados compilados pelo jornal O Globo nos permitem visualizar como o atual governo lidou com políticas de combate e de prevenção à fome. Quero frisar o termo 'prevenção', pois aí reside uma questão fundamental, que explorarei a seguir. Segundo o levantamento, seis programas que auxiliam no combate à fome tiveram o orçamento reduzido em 38,4% entre 2019 e 2022, de R$ 9,3 bilhões para R$ 5,7 bilhões. A previsão orçamentária corrente para 2023 é de R$ 4,4 bilhões.

Dos seis programas, concentro-me em quatro, porque considero que eles não apenas combatem a fome imediata, urgente, mas também previnem contra a fome. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) teve redução de 29,32% entre 2019 e 2022. O PAA garante a compra governamental da produção de pequenos produtores agrícolas e usa esses alimentos em equipamentos públicos, como hospitais, escolas e presídios. Isso incentiva este tipo de produção, que normalmente chega na forma de comida fresca (e até orgânica, agroecológica) em seu entorno. Incentivar a pequena produção não apenas aumenta a diversificação dos alimentos disponíveis no mercado local, mas também aumenta a oferta geral, o que ajuda a prevenir o aumento dos preços dos alimentos.

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Pelo PAA, e por outros meios, o governo federal tem a capacidade de formar Estoques Públicos (EP) de alimentos. O orçamento para esta política pública foi reduzido em 78,02%. De R$ 1,7 bilhão para cerca de 384 milhões. Os EP podem ser empregados em ações emergenciais, mas também para ampliar a oferta de comida no mercado, contribuindo para segurar altas de preço. Hoje, a capacidade efetiva para essa ação é muito limitada, inclusive porque a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) também vem sendo desmontada desde 2016.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) sofreu redução de 20,52%, isto é, de R$ 5,1 bilhões para R$ 4,1 bilhões. Sabemos que, infelizmente, muitas crianças vão para a escola para comer única refeição do dia. Além de ser um porto seguro para saciar a fome, provavelmente será a refeição mais nutritiva do dia, o que contribui para a saúde das crianças. Crianças mais saudáveis adoecem menos, criando menos dificuldades para os pais trabalharem. Elas também aprendem melhor, e a educação é decisiva para melhor renda e a alimentação na vida adulta. Contudo, isso só é possível se as cozinhas escolares tiverem os ingredientes adequados. Hoje, muitas escolas só têm dinheiro para servir bolacha com suco. Pouca comida, com pouco nutriente, leva a mais adoecimentos e menor aprendizado acumulado.

Por fim, o programa de Construção de Cisternas (CC) tem a função de estocar água da chuva. É uma política pública fundamental na região Nordeste, onde sabemos que, inevitavelmente, haverá seca. A dotação para CC caiu 48%, indo de R$ 93, 6 milhões para R$ 48,6 milhões. A CC funciona como um seguro ou poupança contra a fome. Ela permite armazenar a água da chuva - que é grátis! - para uso em tempo de carestia. O dinheiro, público ou privado, que seria gasto com água de caminhão pipa, pode ser usado para comprar comida. Além disso, a água de cisterna oferece condições mais higiênicas do que outras alternativas, diminuindo adoecimentos e, portanto, economizando renda pública ou privada com tratamento de saúde, e que poderá ser revertido para alimentação.

Por outro lado, o governo aumentou o orçamento para o programa de transferência de renda direta. O Bolsa Família, que começou 2019 com R$ 37, 5 bilhões, chega a 2022 com R$ 93,5 bilhões na forma de Auxílio Brasil. Alta de 149%. O aumento do dinheiro na mão das pessoas é, sim, importante, fundamental. Contudo, embora possa ajudar a resolver a fome do mês, esta política pública não fomenta estruturas estatais e sociais de prevenção à fome. Mais do que isso, ela individualiza o processo de sobrevivência à fome quando, na verdade, a insegurança alimentar e nutricional é produzida por um conjunto complexo forças nacionais e internacionais, contra as quais o indivíduo pouco pode fazer.

As nações precisam do Estado e de um conjunto articulado de políticas públicas para protegê-las dessas forças que produzem a fome e o risco de fome no presente, assim como para se precaverem contra ocorrências do tipo no futuro. Do mesmo jeito que é sábio fazer poupança ou contratar seguro, investir em estruturas de prevenção à fome é o mínimo que se espera de um governo responsável. As grandes potências e países desenvolvidos raramente descuidam de políticas deste tipo. Neste século, aliás, já são quatro as grandes crises internacionais que afetaram negativamente as condições alimentares: as crises de 2007/2008, de 2011/2012, a pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia. Isso sem contar os efeitos da catástrofe climática, cada vez mais intensos. Mesmo assim, o governo Bolsonaro não empregou medidas para nos precaver contra uma vulnerabilidade crescente: a área plantada de feijão, arroz e mandioca em 2022 é a menor dos últimos 45 anos, e isso em meio a uma brutal inflação de alimentos.

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Por isso, uma das coisas que está em jogo nestas eleições é o projeto de combate e de prevenção à fome que teremos pelos próximos quatro anos. Os quatro anos passados nos indicam quais foram as prioridades do atual. Concluo parafraseando o ex-reitor de Harvard, Homi Bhabha: ninguém pode construir um futuro, porque o devir, por definição, não existe de fato. Mas todas as nossas ações, a cada dia, constroem um passado. Qual passado queremos ter construído daqui a quatro anos?

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