Renato Eliseu Costa, bacharel em Gestão de Políticas Pública (USP) e Mestre em Ciências (USP) e em Gestão de Organizações Públicas (UNIFESP). Professor da FESPSP na pós-graduação lato sensu e pesquisador do Laboratório de Gestão Governamental (Lab.Gov - EACH/USP).
Fernando de S. Coelho, professor do Bacharelado e do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Políticas Públicas da USP. Coordenador do Laboratório de Gestão Governamental (Lab.Gov - EACH/USP). Doutor em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas.
Paula Trottmann, bacharel em Gestão de Políticas Pública (USP) e Mestre em Ciências (USP), professora de gestão pública e gestora pública municipal e pesquisadora do Laboratório de Gestão Governamental (Lab.Gov - EACH/USP).
As críticas aos processos burocráticos que ocorrem no setor público são assunto constante não apenas nas conversas cotidianas e nas pautas dos meios de comunicação, mas também em parte das discussões acadêmicas. A burofobiaestigmatiza não somente os processos administrativos, mas as pessoas envolvidas neles. Nossa máquina pública é vista constantemente como ineficiente, morosa e engessada e seus servidores são, por vezes, mal compreendidos e rotulados como marajás, vagabundos e parasitas. Não que não haja abuso e mau uso da função pública que se traduzem em corporativismo, baixo desempenhoe distorção salarial - neste caso, em algumas carreiras de "elite" do serviço público -, mas tal situação não espelha a realidade da administração pública brasileira.
No Poder Executivo, aqueles que estão na ponta dos sistemas de políticas públicas, sobretudo em tempos de pandemia, como é o caso dos profissionais de saúde, assistência social e segurança pública, são vistos como verdadeiros heróis e protagonistas da solução dos problemas. E, inegavelmente, são; sobretudo se analisarmos as condições de trabalho adversas que muitos servidores públicos da linha de frente se deparam. Entretanto, é necessário descortinar o que ocorre na retaguarda da máquina pública, na chamada Casa de Máquinas (caracterizada, recentemente, em artigo deste blog)[1], jogando luz num corpo burocrático que é essencial para fazer as coisas andarem nas organizações públicas. Esse papel de coadjuvante, tipicamente exercido pelos burocratas das áreas-meio - peça essencial para destravar nós, gerenciar equipes de trabalho e tocar processos jurídico-técnico-orçamentários, permitindo, assim, que os serviços públicos e os programas governamentais operem - também tem seus clamores e temores.
Na atual circunstância, o burocrata, gestor público em nível intermediário e operacional, precisa apresentar ao governante e aos dirigentes públicos - dos quais a sociedade demanda ação rápida - soluções imediatas. Assim, diferente dos "burocratas de nível de rua", que possuem maior visibilidade perante a sociedade (mas não necessariamente são valorizados pelo Estado), esses atores "invisíveis" - e fundamentais para todo o ciclo das políticas públicas - têm enfrentado desafios diversos durante a crise do COVID-19.
Pensemos que entre o desenho das estratégias e ações emergenciais e a implementação dos projetos e atividades, há uma série de pessoas tomando decisões de natureza técnico-gerencial e desempenhando funções administrativas. Basta olharmos para uma área funcional da gestão pública - a partir das perguntas: quem, quando, onde, por que, como e quanto - para que se visualizem as normas, recursos e instrumentos que estão nas engrenagens do "Estado em ação".
Portanto, numa crise sanitária, com impactos econômicos e efeitos sociais abruptos, a importância do dinamismo dos burocratas de médio escalão e do staffadministrativo é evidente para concretizar as atividades-fim. E, neste sentido, observar o contexto subnacional é muito sugestivo, pois os problemas têm se multiplicado em distintas realidades, o que demanda respostas específicas em cada localidade. E, para a reflexão nesse nível de governo, escolhemos - didaticamente - a área de compras públicas.
Consideremos o caso de um estado ou município que necessite adquirir, urgentemente, EPIs para que os atendimentos de saúde ocorram a contento; e que haja disponibilidade orçamentária para a realização dessa compra pública. No cenário da guerra pandêmica, com a curva de contágio crescendo exponencialmente, prover esses equipamentos é fundamental; porém, igualmente essencial é realizar esse procedimento no curtíssimo prazo. Pelos meios convencionais, considerando todas as etapas envolvidas na tarefa "comprar EPIs" - diagnosticar a quantidade de equipamentos necessários e suas especificações técnicas, iniciar o processo de compra (o mais ágil hoje é o pregão eletrônico que, no Brasil, leva pouco mais de treze dias, em média), realizar a compra, o que compreende também cumprir todas as fases do ciclo orçamentário, receber e distribuir os EPIs para os profissionais das unidades de saúde - levaria, no mínimo, 20 dias. Nesse período de três semanas, a conjuntura da COVID-19 provavelmente alterou-se, como assistimos em vários estados e cidades do Brasil durante o mês de abril.
É, então, que entram em campo, com muita pressão, esses servidores públicos coadjuvantes. Se o pregão, seja eletrônico ou presencial, não atende às necessidades imediatas da administração, como agir? Outros instrumentos de compra disponíveis para o gestor público mostram-se, às vezes, inadequados: seja em razão do tempo médio para sua efetivação, seja por causa do valor dos bens a serem adquiridos e, até mesmo, devido a possibilidade de não haver interesse do mercado em firmar contratos com o poder público. Nesse jogo, uma opção amplamente adotada pelos gestores tem sido as compras emergenciais por meio de PADLs, processos autorizados pela Medida Provisória Nº 926, de 20 de Março de 2020.Contudo, esse instrumento é tido como controverso e muito temido pelos servidores públicos, sobretudo os de carreira, levando em consideração as agruras com a fiscalização dos Tribunais de Conta.
Em adição, na compra pública emergencial acima descrita, independente do instrumento utilizado, burocratas de diferentes áreas/setores governamentais estão envolvidos no planejamento das quantidades e especificações dos materiais adquiridos, na realização do processo de compras/licitações, no subsídio jurídico-legal e na gestão do ciclo orçamentário, desde o empenho até a liquidação da despesa. Nesse processo gerencial, os gestores públicos necessitam encontrar uma solução tecnicamente adequada e juridicamente segura.
Indo mais adiante na complexidade do problema, podemos imaginar um ente subnacional que não tem disponibilidade orçamentária para adotar ações emergenciais de enfrentamento à pandemia e, por conseguinte, busca o apoio da União. Em março, o Governo Federal editou a Medida Provisória Nº 924/2020, por meio da qual libera R$ 5 bilhões para o combate ao coronavírus. Problema orçamentário resolvido, muitos diriam! Todavia, a disponibilização dos recursos pela União não significa, necessariamente, transferência de recursos aos estados e aos municípios. O acesso a esses recursos requer o trabalho dos funcionários públicos das áreas-meio, que se mobilizam para atender a uma série de exigências para que o ente receba esse repasse.
Uma vez obtido esse recurso, há muitas tarefas que o gestor público deve executar. Inicialmente, é necessária uma alteração da peça orçamentária, incluindo os novos recursos e as atividades que com eles serão implantadas - com uma classificação orçamentária realizada por meio de decreto do Poder Executivo em primeira instância e, tão logo quanto possível, por meio de projeto de lei de emenda à LOA. Neste trabalho o burocrata prevê o tipo de ação a realizar, o produto a ser entregue, os beneficiários, a unidade responsável e a forma de implementação, por exemplo. São decisões técnicas e processos administrativos que, diretamente, abrangem várias áreas funcionais da administração pública. Em suma, os burocratas são peça-chave para que a Casa de Máquinas possa acessar e utilizar os recursos, bem como elaborar as ações tático-operacionais que sustentam a prestação dos serviços públicos essenciais.
Ainda, podemos conjecturar, no limite, uma situação ainda mais desafiadora: são recorrentes os casos em que o Ministério Público (MP) exige que os governos implementem programas a toque de caixa para o enfrentamento da pandemia, sem considerar a capacidade dos entes (sobretudo dos médios e pequenos municípios). Cita-se, a título de ilustração, o MP do estado de Pernambuco que ordenou que alguns municípios criassem vagas em leitos de UTI, além de requerer de todos os municípios que decretaram estado de emergência em saúde a elaboração de um plano de enfretamento ao coronavírus, encaminhando-o para o órgão realizar a fiscalização. Novamente, os gestores públicos das áreas-meio trabalharam para atender essas determinações.
Consideremos que, em todas as passagens até então presumidas, para além do conhecimento técnico condizente, é demandado dos gestores públicos agir com mais rapidez, por vezes com ações diferentes das habituais e em um ambiente de urgência que pode culminar em falhas no processo ou, até mesmo, na inviabilização das ações emergenciais - que, no futuro, podem ocasionar aresponsabilização do gestor público nas esferas administrativa, civil e/ou criminal.
Surgem, assim, dilemas na ação dos gestores públicos. É comum ouvir dos burocratas, mesmo em situações normais e de trabalho regular, a seguinte afirmação: "É meu CPF que está em jogo!"; um temor por ser responsabilizado por qualquererro ou omissão, que pode mesmo comprometer seu cargo e seus bens.Logo, tomar decisões em condições adversas como a atual, traduz-se em uma aposta diante da insuficiência de respaldo jurídico ou administrativo consubstanciado na interrogação: após todo o esforço e depois que a crise passar, com os acertos e alguns possíveis erros, o que me reservam os órgãos de controle?
Não estamos afirmando que toda e qualquer ação se justifica, afinal, de "boas intenções o inferno está cheio". Ademais, não estamos desprezando a legalidade, mas devemos discutir o que é maleável e a (re)calibragem da relação entre gestão e controle quando não se tem parâmetros de trabalho. Imagine as aflições de um gestor público "se virando nos trinta" para comprar respiradores para equipar as unidades hospitalares nos dias correntes, antevendo a fiscalização que sobrevirá sobre seu ato.Lembremos que esses questionamentos pelos gestores públicos podem, por vezes, resultarem em inação, evitando-se o risco, ou, ainda, na demora do processo - com a procura por anteparo em orientações de órgãos de controle e/ou formalização de autorizações de seu superior. Embora a gestão pública brasileira avançou com a simplificação e informatização da prestação de serviços públicos ao cidadão, nas áreas-meio o processo de desburocratização e modernização não ocorreu no mesmo ritmo e com a mesma intensidade.
Enfim, o caminho para superar a crise atual passa por possibilitar que as pessoas tenham acesso à saúde e assistência social e, igualmente, que a atividade econômica seja amparada pelo Estado. E o alcance desses resultados requer, dentre inúmeras condições, que o trabalho do gestor público, na Casa de Máquinas da administração pública, tenha clareza procedimental, capacidade gerencial e o devido incentivo político-institucional para o cumprimento ágil e eficiente das funções administrativas. Esta, sim, é uma pauta para a reforma administrativa que não se limita a ideia simplista (em voga nas narrativas governamentais nos últimos anos) de que basta uma reforma fiscal do serviço público para melhorarmos a qualidade das políticas públicas e dos programas governamentais.
[[1]] https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/a-casa-de-maquinas-da-gestao-publica-na-crise-do-coronavirus-o-aqui-e-agora-das-areas-meio-nas-acoes-emergenciais-dos-governos/