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Metaverso e Videogames, Progresso e Alienação

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Por Redação
Atualização:

Lucas Busani Xavier, Graduado e Mestrando em Administração de Empresas (FGV - EAESP), estuda consumo de videogames e teoria das affordances | Twitter: @BusaniLucas

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"A maioria das pessoas que falam sobre o metaverso não fazem a menor ideia do que estão falando. E, aparentemente, nunca jogaram um MMO", disse Gabe Newell em uma entrevista recente para a PC Gamer onde criticava o metaverso e seus entusiastas. Newell é fundador e presidente da Valve, dona da Steam, a maior plataforma de distribuição de jogos para PC, Linux e Mac. A colocação de Newell abre espaço para algumas discussões, mas quero focar em uma delas aqui: a relação entre o metaverso e videogames, que são meu objeto de estudo.

Newell cita como crítica a quem promove o metaverso o fato de muitos nunca terem jogado um MMO, mas o que é um MMO e qual sua relevância aqui? A Sigla MMO em inglês refere-se a Massive Multiplayer Online, uma categoria de jogos onde diversos jogadores compartilham um mesmo mundo de jogo e participam de histórias, aventuras, missões e interações tanto colaborativas quanto competitivas online. Dentro dessa categoria, se encontram jogos clássicos como World of Warcraft (WoW) e Second Life, além sucessos mais recentes como Final Fantasy XIV (FFXIV) e Roblox. A comparação do que o metaverso propõe com MMOs tem sido recorrente, e não à toa: muito do que se promete como proposta de valor do metaverso já existe de alguma forma dentro de todo e qualquer MMO.

As poucas exceções se resumem à dominação dos espaços virtuais por marcas e à vigilância e uso dos dados de usuários por parte dessas marcas na busca de vender seus produtos/serviços. Uma outra promessa do metaverso que o diferenciaria de MMOs, é a utilização de tecnologias de blockchain nas transferências de posses, tanto dentro de dado metaverso, como entre diferentes metaversos. Não é objetivo - nem minha especialidade - discutir blockchain, mas é importante ressaltar dois pontos sobre essa promessa: em primeiro lugar, a compra de objetos virtuais dentro de jogos já foi resolvida há muito tempo por jogos, assim como a criação e fomento de economias internas para tais objetos (Thorhauge e Nielsen, 2021). O uso da tecnologia, aqui, se mostra mais como elemento propagandista, como uma buzzword, do que inovação.

Em segundo lugar, sobre a transferência desses itens de um mundo virtual para outro: dentro do contexto de videogames faz pouco ou nenhum sentido que isso exista, não há qualquer impossibilidade que o uso de blockchain tornaria possível, é uma escolha deliberada (Belk et al., 2022). Imagine um personagem dentro de FFXIV, um jogo de fantasia medieval, trazendo um rifle adquirido em outro MMO. Não faz sentido que isso ocorra, considerando os objetivos imersivos do jogo. Ou mesmo que estejamos falando de itens de jogos tematicamente próximos, como WoW e FFXIV, por que seria permitido trazer um item comprado dentro de um jogo para outro? É do interesse de qualquer desenvolvedora que apenas itens comprados dentro de suas plataformas sejam permitidos dentro de seus mundos virtuais. Mais uma vez, blockchain é jogado como solução de um problema que nunca existiu, e não depende da tecnologia para ser.

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O que nos leva de volta ao ponto sobre dominação dos espaços por marcas, que, na verdade, se origina a partir do modelo de monetização de MMOs em comparação ao metaverso. MMOs tradicionalmente são monetizados por uma ou uma combinação das seguintes modalidades: venda inicial; venda de conteúdos adicionais/DLCs[1]; mensalidades para jogar; mensalidades sobre aquisição de espaços; venda de moeda digital (utilizada na compra de itens); taxação de transações internas (por exemplo, na venda de um item entre dois jogadores). Em uma entrevista para o site Nikkei Asia, o criador do jogo Second Life, Philip Rosedale, comenta como o modelo de monetização do jogo - por aluguel de terrenos virtuais e taxas de transações entre jogadores - serve como exemplo de monetização que permite criar universos virtuais mais lucrativos do que o proposto pela Meta (antigo Facebook) e sem os problemas que o acompanham. Para Rosedale, o "modelo de negócio historicamente utilizado pelo Facebook, baseado numa forma muito sofisticada de advertising envolvendo segmentação comportamental com muita vigilância e dados pessoais, não é seguro para ser aplicado ao metaverso". Ele ainda adverte que o uso desse modelo como padrão no metaverso "seria extremamente perigoso para todos. Na minha opinião, isso simplesmente não pode ser permitido".

Parece que Gabe Newell trouxe realmente um ponto válido: quem fala do metaverso parece não entender bem sobre o que está falando. Outra possibilidade, é a de saber muito bem, e ainda dizê-lo. Uma entrevista recente que fez sucesso aqui pelo Brasil foi a de Rita Wu no podcast da CNN (link de um dos trechos), e ela é cheia de muito do que se vê nas conversas mundo a fora: afirmações confiantes e promessas milagrosas, criadas com palavras vazias e buzzwords pouco explicativas. Ainda assim, pode ser que todos os pessimistas estejam errados, que os sonhos de um bilionário excêntrico se tornem realidade e que o metaverso "dê certo". Para isso Newell também tem uma resposta: "será interessante ver se alguém que está meio que chegando à festa tarde tem algo a adicionar, além do desejo de ter um montão de gente dando para eles um montão de dinheiro por razões mágicas. Mas você sabe, no final, consumidores e tecnologias úteis vencem, então eu não estou super preocupado com isso."

Apesar do otimismo de Newell em relação ao poder dos consumidores de dar suporte para tecnologias úteis e rejeitar as inúteis, talvez possamos encontrar nos próprios videogames uma resposta não tão otimista para essa questão. Molesworth e Watkins (2014) teorizaram o papel do consumo de videogames por adultos e sua relação com o sentimento de progresso em suas vidas. Os autores trazer uma conclusão não muito positiva: para adultos jogadores, seus videogames se tornaram a única fonte de senso de progresso e de realização, já que suas vidas pessoais e profissionais vivem na estagnação e alienação. Não é novidade a ninguém - especialmente em 2022, especialmente no Brasil - os efeitos psicológicos de trabalhos alienantes e sem perspectivas de melhora misturados com uma ideologia de necessidade de progresso constante. Gerações que formam hoje o mercado de trabalho não detêm renda ou expectativas de sucesso como as anteriores - que, em boa parte, guardam para si ambas - e estão cada vez mais alienadas, desesperançosas e depressivas. A pandemia que acabamos de passar serviu apenas para exacerbar cada um desses pontos.

Jogos de videogame se tornam, então, não mais meios de fuga para mundos virtuais onde jogadores buscam divertimento e entretenimento, mas espaços onde rotinas de progresso e superação proporcionam o que a vida real os nega, ao mesmo tempo que perpetuam o ideal de que é possível viver em constante progresso. Para os autores, "podemos reconhecer que esse processo serve à produção capitalista contemporânea, dado que jogar emerge de sua frivolidade para a legitimidade unicamente em compensar a falta de progresso vivenciada em práticas de trabalho que se mantém alienadas através da produtividade baseada em tecnologia, que é subsequentemente alcançada através do consumo das mais recentes commodities tecnológicas". A conclusão dos autores pode parecer mais um dos tantos casos de pânico moral que a indústria dos videogames passou. Mas eu chamo atenção do leitor, não como pesquisador, mas como um jogador de longa data e incontáveis horas de jogo, para a validade da argumentação, e o reconhecimento desse processo em nossas práticas e rotinas de jogo. O argumento é forte e, admito, encontra validade na minha experiência atual como jogador.

Assim, ainda que a ideia de metaverso gere inúmeros questionamentos, que seu modelo de monetização seja perigoso, que suas tecnologias sejam fetichizadas e que sua proposta de valor seja simplista, se ele for capaz de manter seus usuários com o senso de progresso necessário para suplantar a alienação e desesperança vivida no mundo real, pode ser que ele "dê certo." Resta perguntar se esse é o "dar certo" que queremos para o nosso futuro.

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Notas

[1] Do inglês, downloadable content, refere-se a conteúdos de jogos extra e que podem ser adquiridos e baixados online.

Referências

Belk, R., Humayun, M., & Brouard, M. (2022). Money, possessions, and ownership in the Metaverse: NFTs, cryptocurrencies, Web3 and Wild Markets. Journal of Business Research, 153, 198-205. https://doi.org/10.1016/j.jbusres.2022.08.031

Molesworth, M., & Watkins, R. D. (2016). Adult videogame consumption as individualised, episodic progress. Journal of Consumer Culture, 16(2), 510-530. https://doi.org/10.1177/1469540514528195

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Thorhauge, A. M., & Nielsen, R. K. L. (2021). Epic, Steam, and the role of skin-betting in game (platform) economies. Journal of Consumer Culture, 21(1), 52-67. https://doi.org/10.1177/1469540521993929

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