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Indenizar suicídio policial e vítimas de letalidade policial: duas medidas humanitárias, necessárias e justas

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Por Redação
Atualização:

Benedito Mariano. Mestre em ciências sociais pela PUC de São Paulo. ex Ouvidor da Polícia de São Paulo, assessor parlamentar e prof. da Faculdade de Direito de Santa Maria-FADISMA .RS.

 

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O suicídio policial e as mortes em decorrência de intervenção policial são dois fenômenos graves que acontecem no estado de São Paulo e para os quais o governo, até agora, não deu a devida atenção e prioridade. Vamos analisar primeiro o suicídio policial.

O primeiro cientista político a estudar e buscar compreender o suicídio na sociedade moderna foi o sociólogo francês Emile Durkheim. Sua grande contribuição em relação ao tema se deu por meio da publicação de um estudo intitulado "O Suicídio", em 1897, no qual expressou sua teoria de que o fenômeno deveria ser analisado como um fato social, que, nas palavras do autor,"embora fortuito e resultado de razões particulares, por apresentar regularidade, recrudescimento ou diminuição de intensidade em certas condições históricas, expressa assim sua natureza social".

No livro "Um toque de clássicos", Tania Quintaneiro, Maria Ligia de Oliveira e Marcia Gardênia dialogam com a tese Durkheimiana, afirmando que "Nessa sua construção de entender o suicídio como fato social, Durkheim enfatiza que o suicídio é resultante de fatores de origem social que ele chama de "correntes suicidogêneas" que são as correntes do egoísmo, de altruísmo e anomia que afligem a sociedade e atuam sobre os indivíduos"

Em 2019 a Ouvidoria da Polícia de São Paulo, em parceria com os Conselhos Regionais e Federal de Psicologia, realizou uma pesquisa inédita na qual foram analisados 53 suicídios de policiais da ativa nos anos de 2017 e 2018 (36 de policiais militares e 17 de policiais civis e técnicos científicos). Concluiu-se que o suicídio policial é a segunda causa de vitimização policial (a primeira é homicídio na folga) e que a taxa do suicídio policial em São Paulo é quatro vezes maior que na sociedade paulista como um todo.

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Após a realização de entrevistas com policiais que trabalhavam com as vítimas e familiares, a pesquisa indicou 08 hipóteses de motivação do suicídio policial. São elas: estresse inerente da função, falta de suporte de serviço de saúde mental, conflitos institucionais, subnotificação de tentativas de suicídio, fácil acesso a arma de fogo, conflitos financeiros e familiares, depressão e isolamento social/rigidez/introspecção.

Todas essas hipóteses de motivação do suicídio policial levantadas pela pesquisa reforçam a teoria de Emile Durkheim de que o suicídio é um fato social. Em especial, as cinco primeiras motivações citadas têm relação direta com o trabalho policial. Mas, mesmo as motivações de conflitos familiares e financeiros, depressão e isolamento social, dialogam com a natureza social, o que se evidencia quando verificamos os baixos salários dos policiais das bases das polícias, que, para complementar sua renda,muitas vezes fazem um ou dois serviços extras, os "bicos", ficando mais estressados e com pouco convívio familiar.

Portanto, as oito hipóteses de motivação não devem ser vistas isoladamente. O suicídio policial deve ser encarado como um fenômeno multicausal, e as medidas para sua prevenção devem levar em conta esta característica.

O fato é que o Estado tem responsabilidade direta pelo suicídio policial, razão pela qual deveria indenizar os familiares de policiais que cometeram suicídio, assim como indeniza familiares de policiais mortos em serviço.

Mas, principalmente, o Estado deveria garantir a existência de um Programa de Saúde Mental, do início até o fim da carreira, para todos os policiais das três polícias: Polícia Militar, Polícia Civil e Técnico Cientifica. Hoje, as Polícias Civil e Técnico Cientifica não têm programas, e o programa da Polícia Militar atinge apenas cerca de 30% do seu efetivo e não garante suporte integral.

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É preciso urgentemente um amplo programa de saúde mental que dê suporte a todos (as) policiais porque o estresse é inerente da função policial. E é exatamente isso que propõe o PL nº 515/20 da deputada estadual Isa Penna do PSOL, que tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo.

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Vale ressaltar que a pesquisa de suicídio policial da Ouvidoria da Polícia de São Paulo trouxe também outro fato importante. A maioria absoluta dos policiais que cometeram suicídio (86%) não se envolveu em nenhuma ocorrência de morte decorrente de intervenção policial em toda a carreira, indicando que não há relação entre suicídio policial e letalidade policial, apesar de ambos serem questões recorrentes nas policias.

O fenômeno da letalidade policial, por sua vez, constitui-se como outro importante tema que deve ser enfrentado, tendo-se em vista que marca a história da polícia de São Paulo, em especial da Polícia Militar. Nos últimos 25 anos, apenas o governador Mario Covas tratou a questão da diminuição da letalidade policial como prioridade. E não é coincidência que foi em sua gestão que foi criado a Ouvidoria da Polícia.

As mortes em decorrência de intervenção policial no primeiro semestre de 2020 atingiram seu maior patamar desde que iniciou-se a série histórica, em 2001, com o agravante que este aumento vem se dando em plena pandemia do COVID 19, quando, em razão do isolamento social, diminuíram vários crimes relacionados a circulação de pessoas, como furto e roubo.

Pesquisa também inédita da Ouvidoria da Polícia de São Paulo, que contou com apoio do gabinete do secretário de Segurança Pública da época, lançada em agosto de 2018, analisou 80% de todas as ocorrências de morte em decorrência de intervenção policial no ano de 2017. Observou-se que em 74% dessas ocorrências houve indícios de excesso policial, e em pelo menos 26% delas (o que representa mais de 200 pessoas mortas), havia indícios fortes, com base em laudos técnicos, de que as vítimas não portavam arma de fogo ou sequer estavam cometendo qualquer delito. Não há, portanto, que se falar em excludente de ilicitude.

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Existe um preconceito histórico da polícia contra pobres e negros. O perfil das vítimas da letalidade policial indica que a violência policial não é aleatória.

São casos como o do jovem David Nascimento dos Santos, no bairro do Jaguaré na capital paulista, que foi sequestrado e morto por policiais militares, na porta de sua casa, enquanto aguardava entrega de comida pedida em aplicativo. Como o caso do jovem Guilherme Silva Guedes, que também foi sequestrado e morto por policiais que estavam de folga, quando estava em frente à sua casa e foi encontrado morto em Diadema. Mas recentemente, o caso de Rogério Ferreira, morto no dia de seu aniversário após abordagem de policiais da Rocam. Rogério estava com a moto de seu amigo e, segundo imagens veiculadas, não mostrou resistência. Estes três casos ilustram a triste realidade de mortes cometidas por agentes do Estado em situações em que as vítimas não cometeram delito algum, mas foram condenados a morte pela sua condição social e cor da pele, sob alegação de "fundada suspeita". Diferente do que diz o governador do Estado, os desvios de conduta que levam a morte das vítimas não representam menos de 1%. Os excessos são sistemáticos nas periferias do Estado e atingem sempre os pobres e a juventude negra.

Há também aquelas ocorrências de mortes em decorrência de intervenção policial em que as vítimas estavam cometendo delito mas não mostraram resistência a abordagem policial, como o caso de quatro adolescentes, no mesmo bairro do Jaguaré, em 2018, que, após furtarem um veículo, se renderam e foram mortos deitados no chão, segundo laudos técnicos e testemunho de uma sobrevivente.

Outra natureza de ocorrências são aquelas em que o resultado morte poderia ser evitado se houvesse planejamento da ação. São as ocorrências precipitadas, improvisadas e desastrosas, como as ocorrências de controle de distúrbio no baile funk de Paraisópolis que resultou na morte de 09 adolescentes  e a ocorrência que vitimou umsushiman em bairro nobre da cidade, morto após um surto, com 05 tiros pelas costas, quando estava sozinho no seu local de trabalho. Nenhuma família das vítimas foi indenizada pelo Estado.

Outro dado relevante da pesquisa diz respeito aos horários das ocorrências: 43% delas ocorreram das 18:00hs até meia noite e 25% da meia noite até as 6:00hs da manhã. O comum nessas ocorrências é que em grande parte delas não havia testemunhas civis; os relatos dos fatos consistiam exclusivamente nos depoimentos dos policiais envolvidos.

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Já que a maioria das apurações internas promovida pelos Batalhões de origem dos policiais implicados nas ocorrências não resultam na punição dos mesmos, e mesmo os Inquéritos Policiais da Polícia Civil concluem, na maioria das vezes, pelo não indiciamento dos policiais, temos poucos casos que chegam a julgamento. É importante que estes casos recebam uma atenção maior do Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo da atividade, e que o mesmo se mantenha atento aos constantes pedidos de arquivamentos destes procedimentos de apuração, que geram a não punição dos policiais infratores e alimentam a letalidade policial.

O método Giraldi de Tiro Defensivo na Preservação da Vida, usado pela Polícia Militar desde 1998, e que é pautado nos conceitos de proporcionalidade, oportunidade, necessidade e qualidade nas ocorrências, não está sendo devidamente observado em centenas de ocorrências de morte em decorrência de intervenção policial. O uso da força letal é, segundo o próprio método, o último recurso numa situação de confronto e legítima defesa, para garantir a integridade física do policial e de terceiros.

Portanto, indenizar familiares de vítimas de violência policial letal em ocorrências em que não houve resistência ou em que a vítima não estava envolvida em delito, e nas ocorrências realizadas através de ações precipitadas e abusivas por parte da polícia em que o resultado morte poderia ter sido evitado, é imperativo. O PL nº 513/20, da deputada estadual Isa Penna, tem a coragem de propor indenização aos familiares de vítimas da violência policial letal de ocorrências em que não se caracteriza confronto entre agentes do Estado e as vítimas.

E para garantir transparência na análise desses casos em que há indícios de que não houve confronto e, portanto, não houve excludente de ilicitude, é que o projeto de lei estabelece que caberá a Comissão Especial de Redução da Letalidade, vinculada ao gabinete do secretário de Segurança Pública, a responsabilidade pela análise de cada caso, com base em laudos técnicos produzidos pela Polícia Técnico Científica.

Indenizar suicídio policial porque tem relação com o trabalho policial e vítimas de letalidade policial em casos em que não houve confronto armado entre os agentes do Estado e as vítimas é uma questão humanitária, necessária e extremamente justa. Esperamos que o parlamento de São Paulo tenha sensibilidade e aprove as duas iniciativas.

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