REDAÇÃO
24 de maio de 2020 | 19h22
Fernando de S. Coelho, professor do bacharelado e do programa de pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo. Coordenador do Laboratório de Gestão Governamental (Lab.Gov – EACH/USP). Doutor em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas.
Murilo Lemos de Lemos, chefe da Assessoria de Relações do Trabalho da Prefeitura Municipal de São Paulo. Mestre em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getulio Vargas. Pesquisador do Laboratório de Gestão Governamental (Lab.Gov – EACH/USP). Professor universitário.
Andrea Leite Rodrigues, professora do programa de pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo. Editora-chefe do periódico Cadernos Gestão Pública e Cidadaniada Fundação Getulio Vargas. Doutora em Administração pela Fundação Getulio Vargas.
Usualmente, os especialistas em gestão pública, independentemente de sua área de conhecimento, utilizam o termo Máquina Pública (em inglês, publicmachine bureaucracies)para se referirem ao conjunto de órgãos e entidades da administração pública. Como tratado, anteriormente, em artigo neste blog[1], a metáfora das organizações como máquinas – derivada do best sellerde Gareth Morgan –, remete à abordagem mecanicista de algumas escolas clássicas do managementorientadas pelo ideal de racionalização dos processos administrativos e da linha de produção.
Essa imagem das organizações como engrenagens e roldanas, satirizada por Charlie Chaplin no filme Tempos Modernos (1936), sustenta-se no setor público pela tradição de uma estrutura baseada em normas e regras do direito público que moldam a burocracia formal e operacional. Por consequência, surge a chamada Casa de Máquinas da gestão pública, na qual ocorre a secundarização de questões relacionadas às funções tático-gerenciais e ao comportamento organizacional (motivação e estresse no trabalho, além de questões relacionadas ao exercício da liderança e cultura organizacional).
A área-meio de gestão de recursos humanos (GRH), na administração pública brasileira, ilustra essa realidade: tradicionalmente, nas organizações públicas e unidades centrais de recursos humanos dos governos, a GRH não realiza propriamente a gestão de pessoas, limitando-se a um departamento de pessoal (DP) cujo papel é “tocar o cotidiano” de processos pecuniários, tais como as rotinas de folha de pagamento, o fluxo de férias, o controle de benefícios e a concessão de aposentadorias. A ausência de diretrizes/estratégias para a gestão de pessoas no setor público do país e a insuficiência de desenvolvimento gerencial das relações humanas em muitos dos nossos órgãos públicos, revela, por vezes, uma desumanização do serviço público. Identifica-se isso pelo desajustamento entre gestão e gente e/ou pela desconsideração dos servidores públicos como pessoas – sobretudo a mão-de-obra do nível hierárquico inferior, invisível na estrutura organizacional.
Mesmo existindo uma valorização da agenda de gestão de pessoas no setor público nacional nesta década, o rol de reflexões e ações focalizam os temas macroestruturais. Há pautas apoiadas, inclusive, por organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e coalizões de atores públicos e privados, com iniciativas na União e em alguns governos estaduais. Há ações voltadas ao redimensionamento da força de trabalho, à integração de carreiras, à equalização de salários entre setor público e privado, aos critérios de nomeação para os cargos de direção pública, ao aperfeiçoamento do concurso público e à revisão da estabilidade. E, de fato, esse frontlisté fundamental! Porém, relegamos assuntos igualmente essenciais como capacitação contínua, comunicação interna e endomarketing, mudança organizacional, relações interpessoais, saúde ocupacional, ergonomia no ambiente de trabalho, clima laboral, suporte socioemocional e aprendizagem informal, dentre outros aspectos atinentes aos pressupostos do desenvolvimento organizacional e à perspectiva de qualidade de vida no trabalho.
Em adição, alguns diagnósticos – e diversas narrativas – para a reforma da GRH no setor público brasileiro, partem da realidade do serviço público federal, notadamente das carreiras de alto escalão e dos malefícios de seu corporativismo, como se fosse o retrato da organização do trabalho em todos os níveis de governo e órgãos da administração pública. Ignoram-se, grosso modo, as condições laborais do contingente de funcionários que pertencem às carreiras da burocracia do nível da rua que prestam os serviços públicos para o usuário-cidadão, bem como daqueles servidores da burocracia de baixo escalão que executam o task managemente/ou atividades de apoio técnico-operacional nas várias áreas setoriais do Poder Executivo nos estados e municípios.
Logo, considerando o desenrolar da pandemia da COVID-19 nos últimos 60 dias no Brasil e seus desdobramentos nas formas de produção e de trabalho no serviço público subnacional, captamos algumas situações que permitem, didaticamente, jogar luz em algumas questões até então preteridas no debate sobre modernização da gestão de pessoas nos governos. Enfim, são 6 (seis) pontos de atenção que servem como lições para (re)pensarmos as políticas e práticas de gestão de pessoas nos governos a partir do ideário de humanização da máquina pública.
Vale salientar que, ao advogar em prol desses 6 (seis) pontos de atenção na gestão de pessoas dos nossos governos, não estamos aderindo ao coitadismo ou vitimização dos servidores públicos, mas, sim, defendendo a oferta pelo Estado dos meios adequados em seu ambiente de trabalho para a prestação dos serviços públicos. Esses problemas não podem ser desprezados ou considerados como “frescurada” – como propalam alguns políticos e dirigentes públicos que generalizam a visão de que todos os servidores públicos constituem uma casta de trabalhadores privilegiada e ineficiente. Em linhas gerais, são vacâncias na gestão de pessoas que requerem investimento financeiro, trabalho meso e micro gerencial nas organizações públicas e mudança cultural e, portanto, não se enquadram, meramente, no ajuste fiscal do serviço público e na reforma administrativa dos seus institutos jurídicos.
No caos da pandemia, mesmo em condições de trabalho adversas, funcionários públicos dos estados e municípios – 80% dos quais não integram as carreiras/cargos da elite burocrática – demonstram sua capacidade de inovação. Muitos constroem o próprio avião, enquanto pilotam, servem os passageiros e cuidam dos que ficaram em terra. É mister registrar a aprendizagem desse período, pois marcará um tempo em que servidores, tanto da linha da frente como do backoffice, demonstraram sua competência em ações emergenciais e sua capacidade de adaptação.
E para aproveitar e manter essa experiência, a área funcional de GRH nos governos subnacionais necessita ser remodelada, revisando seu papel e qualificando as equipes de trabalho, para que vá além da praxe trabalhista e apoie as organizações públicas para construírem políticas de recursos humanos e práticas de desenvolvimento gerencial que (re)conectem a gestão e as pessoas, humanizando a máquina pública. Por fim, mas não menos importante, a participação de organizações da sociedade civil (como ONGs, institutos e fundações empresariais) é muito bem-vinda, desde que seus agentes se aproximem da burocracia despidos de preconceitos oriundos de rotulagens; se interpretar tudo como paternalismo e visualizar todos como corporativistas, sem separar o joio do trigo, as intervenções vão se tornar despropositadas. Ademais, se posicionar as ações como projetos e não trabalhar para a institucionalização de programas que estruturem – coletiva e permanentemente – uma inteligência de gestão de pessoas, os aperfeiçoamentos podem ser descontinuados com a alternância de gestão.
[[1]]https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/a-casa-de-maquinas-da-gestao-publica-na-crise-do-coronavirus-o-aqui-e-agora-das-areas-meio-nas-acoes-emergenciais-dos-governos/
[[3]]https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/por-que-entender-e-combater-o-assedio-institucional-no-setor-publico-brasileiro/
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