Roberto di Cillo, Senior Research Fellow do FGVethics, advogado
Ligia Maura Costa, Professora titular na FGV - EAESP, Coordenadora geral do FGVethics, Advogada
Gestão de mudança é vital porque as organizações mudam, a vida muda e o mundo muda. E, com as mudanças, surge a necessidade de revisitar padrões de conduta e, eventualmente, até alterar alguns deles.
As relações entre setor público e privado podem ser imorais, mas não deveriam. Em reconhecimento de um fato que é para lá de notório, existem há muito códigos de ética aplicáveis a funcionários de ambos os setores, precedentes inclusive dos programas de integridade que ganharam fôlego no Brasil com a edição da Lei Anticorrupção.
No âmbito federal e na sequência do programa nacional de desestatização e dos programas estaduais do gênero, foi aprovado o Código de Conduta da Alta Administração Federal, em 2000. Ali, naquele momento, as agências reguladoras estavam sendo desenvolvidas, já era conhecida a Teoria da Captura - quando a agência reguladora perde a condição de autoridade comprometida com a proteção do interesse coletivo e passa a atuar para legitimar interesses de setores regulados -, que não é uma jabuticaba brasileira, e era importante disciplinar de alguma forma como essas relações deveriam ser travadas de forma republicana.
Quem escolhe assumir uma posição no setor público precisa se conformar que pode ser que a agilidade característica do setor privado não esteja ali presente e disponível. Agente público da alta administração ligar para um "contratinho amigo" do passado para averiguar qual seria o mínimo aceitável de taxa de juros é algo que afronta vários dos princípios do artigo 37 da Constituição Federal, inclusive impessoalidade e publicidade, ainda que em busca de eficiência. E, mais concretamente, pode ser também ato de improbidade, já que na parte específica do artigo 11 da nova Lei de Improbidade Administrativa, a lei desidratada da improbidade, mas não desfeita, bem como pode ser violação do Código de Conduta da Alta Administração Federal.
Pouco importa se a conversa vazada por agente do setor privado para veículo da imprensa "era mais em nível de teoria econômica e não sobre alguma decisão específica do Comitê de Política Monetária (Copom) sobre juros", como afirma em nota o Banco Central. A imoralidade não é compatível com os padrões de conduta ética de nossos dias, nem com as atuais políticas ESG (ambiental, social e governança).
Por outro lado, agente do setor privado que se gaba de ter importantes "contatinhos amigos" na alta administração pública pode até tentar se vender como uma pessoa bem relacionada, mas o mundo está mudando contra esse tipo de agente, por sorte. O possível cancelamento de agente privado que deixa, ainda que culposamente, passar a imagem de que é indevidamente influente na alta administração pública pode até não ter a força que teria pela aplicação da antiga Lei de Improbidade, que exigia culpa para a sua responsabilização.
Mas, isso não quer dizer que a ameaça de cancelamento em redes sociais e, portanto, na vida inteira e eternamente na Internet, não seja um desincentivo a más condutas e até uma forte punição reputacional a pessoas físicas e jurídicas relacionadas. E, aliás, o que fará a organização do setor privado do qual faça parte um agente nessa situação, diante de uma eventual indiscrição e sugestão de influência até indevida?
E a vida pode ficar ainda mais complicada para agentes públicos e privados que sejam "contatinhos" do passado e optem por não gerir uma mudança, como a do ingresso de um deles no setor público, ainda mais se aquele que passar para o setor público tiver investimento em offshore, com no caso recente revelado pelos Pandora Papers. Pode ser que o neo agente público até tenha declarado um investimento em offshore Panamenha, da ordem de alguns milhões de dólares, a uma comissão de ética pública.
Mas, sua participação inclusive e eventualmente em conselho governamental com efetiva atuação no desenvolvimento e implementação de políticas públicas sensíveis à variação cambial ou que possam provocá-la, permitindo portanto uma valorização daquele investimento internacional, envergonha o Brasil, pouco importando se há ação concreta ou efetiva, direta ou indireta do agente em questão, como investidor ou cônjuge ou parente próximo de investidor.
Sob a Lei 12.813 de 2013, que trata de conflitos de interesses e uso de informações privilegiadas, funcionários da alta administração devem "agir de modo a prevenir ou a impedir possível conflito de interesses e a resguardar informação privilegiada" (art. 4º). Como? A lei exemplifica conflitos de interesses durante e após o exercício do cargo e delega competência à Comissão de Ética Pública (CEP) e à Controladoria Geral da União (CGU) para estabelecerem normas, fazerem avaliações e darem consultoria.
Além disso, na mesma lei, encontra-se restrição para a prática de ato "em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes (...), e que possa ser por ele beneficiada ou influir em seus atos de gestão", sob pena de aplicação das sanções da hoje desidratada Lei de Improbidade Administrativa.
No fundo e com relação aos agentes público e privados acima aludidos, a situação pode até não ser ilegal, como ato não passível de punição sob a nova Lei de Improbidade Administrativa, ou mesmo sob a antiga lei de 2013, que trata de conflitos de interesses e uso de informações privilegiadas, ou qualquer outra lei ou até do Código de Conduta da Alta Administração Federal, mas é imoral e antiética.
O cancelamento pode ser eterno e a vítima será sempre o Brasil, cujos cofres continuarão a sofrer o impacto de ações temerárias de quem simplesmente não quis ou optou por não gerir adequadamente as mudanças.