Ernesto Tzirulnik, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo - USP e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro - IBDS
Dias atrás publiquei um artigo chamando a atenção para o que considero a série de desacertos e um acerto "na mosca" da primeira regência da Susep. O numeral se deve ao fato de que os regentes não param de desertar ou cair, na Saúde, em tempo de pandemia, e na Educação, em tempo de evasão escolar. Por que motivo seria diferente na área econômica, em tempo de crise?
Terminei-o dizendo que a graciosa superintendente cairia em desgraça - e provavelmente do posto - por causa do pouco bem feito, e invoquei o hino do Reino Unido, terra santa do resseguro internacional poupado pelas resoluções e circulares deste governo: "God Save the Superintendent".
O ato virtuoso, entre os malfazejos, é a resolução CNSP n° 382/20 do Conselho Nacional de Seguros Privados - órgão normativo do qual a SUSEP é o corpo e a alma. A resolução manda ser divulgada, aos consumidores de seguros, a totalidade das comissões ou outras remunerações abocanhadas pelos corretores de seguro e demais intermediários.
Não há aí nenhum demérito à profissão do corretor de seguro. Há corretores bem formados e situações nas quais efetivamente contribuem para a concretização e execução dos contratos de seguro, quando merecem ser devidamente remunerados. O problema é quando e quanto.
Além dos corretores, as seguradoras criam, sob as asas, um sem número de entes que auferem ganhos como intermediários. No final das contas, a maior parte daquilo que os segurados pagam a título de prêmio acaba ficando nos bolsos de atravessadores sem nenhuma utilidade. Depois, vêm as seguradoras sofismar que os seguros têm alta sinistralidade para imporem aumentos de prêmios e reajustes. Conversa ladina. Deixassem de atribuir ganhos abusivos a corretores e intermediárias coligadas de fachada, cairia absurdamente a proporção entre os prêmios recebidos e os sinistros pagos, evidenciando que há lucro e sobrepreço.
Quem mais ganha com a ignorância dos consumidores são os corretores e os grandes grupos financeiros que detêm o controle de seguradoras, como BB Seguros, Caixa, Bradesco e Itaú.
Com base nos números oficiais, divulgados pela Susep, destaquei o seguinte naquele artigo: "A coisa fica ainda mais escandalosa no chamado seguro prestamista, vendido pelos bancos aos clientes que tomam empréstimos. Embora se procure induzir à compreensão de que seriam seguros de vida e desemprego, assim facilitando sua venda e obtendo proveito de regime tributário mais favorável, na verdade são seguros de crédito que garantem o recebimento, pelos bancos, daquilo que os mal-afortunados devedores deixarem de pagar em razão da perda do emprego ou de sua morte. Pois bem, nesses seguros que os consumidores nem mesmo sabem que contrataram e que são vendidos principalmente pelos bancos em seu próprio benefício, e intermediados a preço régio por empresas do seu grupo, as despesas de intermediação consumiram 42% dos prêmios e a sinistralidade foi de apenas 17%, proporções essas que denunciam a flagrante imoralidade dessas operações."
Uma situação como essa não poderia deixar de receber a intervenção estatal.
Curiosamente, a ordem de informar os custos comerciais somente aconteceu sob a regência da superintendente que festejou o maior número de mortes de idosos pela Covid-19 como solução para o déficit da Previdência e tentou acabar com o único seguro para as vítimas de acidentes de trânsito porque, na sua curta visão, seria contra a liberdade econômica obrigar o proprietário de um automóvel a solidarizar-se para a formação de fundo para indenização das vítimas.
Nas gestões anteriores, especialmente nas dominadas pelos corretores de seguros, isso seria impensável. Seus deuses são as comissões e a transparência é heresia.
Mas, a resolução CNSP n° 382/20 é indiscutivelmente um ato normativo administrativo constitucional, cidadão, benfazejo para os segurados e, sobretudo, capaz de contribuir para o fim dos gigantescos desvios que são feitos às escuras, a título de custos comerciais.
A Constituição Federal atribui ao Estado, ao CNSP e à Susep, o dever de promover "a defesa do consumidor" (art. 5°, XXXII). Entre os chamados princípios da República ou "princípios da ordem econômica", a Constituição reitera o da defesa do consumidor (art. 170, V).
A Constituição não exige que isso seja feito por lei em sentido formal, como prevê para o caso do esclarecimento dos consumidores "acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços." (CF, art. 150, § 5°). Basta, pois, um ato normativo do CNSP, como foi feito dessa vez.
Descendo um grau na hierarquia legal, o Decreto Lei n° 73/1966, recepcionado como lei complementar, apenas exige que o controle estatal, isto é, a intervenção feita através do CNSP e da Susep, aconteça "no interesse dos segurados e beneficiários dos contratos de seguro."(art. 2°). Justamente para isso é que foi atribuída competência privativa ao CNSP para, respeitada a competência reservada ao Legislativo, (i) fixar as diretrizes e normas da política de seguros privados; (ii) fixar as características gerais dos contratos de seguros e (iii) disciplinar a corretagem de seguros e a profissão de corretor (art. 32, I, IV e XII).
No plano do Código de Defesa do Consumidor, é um direito básico o direito à informação que especifique corretamente o preço do serviço (art. 6°, III) e a esse quadro fundamental de direitos agrega-se o direito do consumidor contra os "métodos comerciais coercitivos ou desleais" e contra quaisquer "práticas abusivas". (art. 6°, III e V).
A preocupação com a plena conscientização dos consumidores é de tal magnitude que foi criado o Departamento Nacional de Defesa do Consumidor, a fim de "informar, conscientizar e motivar o consumidor através dos diferentes meios de comunicação" (art. 106, IV) e tipificada como infração penal a conduta omissiva de informação relevante sobre "(...) preço ou garantia de produtos ou serviços", com pena de detenção de três meses a um ano e multa (art. 66).
Nada mais natural do que o contratante de um seguro saber o que está sendo pago com o seu dinheiro, a título de remuneração para intermediários conhecidos e verdadeiros ou atribuído clandestinamente para fantasmas.
O líder da classe dos corretores de seguro, Armando Vergílio do Santos, presidente da Federação Nacional dos Corretores de Seguros que já ocupou a posição de superintendente da Susep, em seguida elegeu-se deputado, e ao seu filho, para batalhar pelos corretores de seguros, acima de todos, publicou manifestação instituindo o canteiro de obras do cadafalso da superintendente que uma vez na vida ousou socorrer os consumidores.
Representantes do chamado "Centrão", apoiados pela Fenacor e pela BB Seguridade, entre outras instituições interessadas nos bilionários ganhos ocultos da intermediação, passaram a confrontar a superintendente que ainda não caiu porque o governo todo está bambo. Por iniciativa da Federação dos Corretores também tramita no Supremo Tribunal Federal um cambembe mandado de segurança "contra a edição e publicação da Resolução CNSP n° 382".
Na guerra total pela obscuridade das comissões, as forças contrárias à Susep tornam-se transitoriamente nacionalistas e chamam a subserviência ao imperialismo ressegurador de desvio de capita, a insinuar que a superintendente entrou na bufunfa. Diante disso, a autarquia cede às pressões que também vêm dos seguradores e resseguradores, posterga o início de vigência da norma pró consumidor e dá mais um passo contra o povo ao apresentar sua proposição de nova resolução para criar, agora sim à margem da lei formal, um esdrúxulo resseguro de propósitos específicos.
Covardes não governam, ladram. Transparência é requisito para a democracia e para o desenvolvimento, ainda mais quando a população que arca com as monstruosas comissões comerciais está carente, ainda mais carente, de tudo.
To hell with them, God save us.