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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Excludente de ilicitude à priori nos Boletins de Ocorrência contribui com a letalidade policial

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Por Redação
Atualização:

Benedito Mariano. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, ex-Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, assessor parlamentar da Deputada Estadual Isa Penna - PSOL/SP e Professor da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA) - RS.

 

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A excludente de ilicitude já é prevista no Código Penal Brasileiro (CPB). O artigo 23 do CPB estabelece que não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legitima defesa e em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Portanto legitima defesa é uma das excludentes de ilicitude prevista em lei. Mas o mesmo artigo 23 do CPB traz um parágrafo único que estabelece que: o agente em qualquer das hipóteses deste artigo responderá pelo excesso doloso ou culposo.

O debate sobre excludente de ilicitude ganhou visibilidade nacional quando o ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro incluiu no seu projeto intitulado "Pacote Anticrime", a ampliação da excludente de ilicitude. Ele propôs a inclusão de mais um inciso no artigo 23 do CPB com a seguinte redação: "[...]Excesso doloso ou culposo durante reação, o juiz poderá reduzir a pena pela metade ou não a aplicar, se esse excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

Na prática, a proposta de novo inciso do ex-Ministro Sergio Moro tornaria sem efeito o parágrafo único do artigo 23 do CBP.

É sabido que a intenção do ex-Ministro era tirar do papel uma das bandeiras do então candidato Jair Bolsonaro, de não punir excessos cometidos por policiais em ações de letalidade policial. As ações excepcionais ilícitas se justificariam por três situações totalmente subjetivas: escusável medo, surpresa e violenta emoção. Vale ressaltar que infelizmente os excessos em ações de letalidade policial não são exceções, são quase como regra, o que torna a proposta indecente.

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Na verdade, a ampliação da excludente de ilicitude poderia levar, na prática, ao aumento da letalidade policial pelo entendimento genérico de que estaria se dando liberdade para os policiais matarem, a medida que em qualquer ocorrência de morte decorrente de intervenção policial poder-se-ia alegar as três atenuantes subjetivas previstas no pacote anticrime.

O estado de São Paulo e o Brasil já tem uma elevada taxa de letalidade policial. Em pesquisa realizada pela Ouvidoria da Polícia de São Paulo que analisou 80% das ocorrências de morte em decorrência de intervenção policial no ano de 2017, ano em que a letalidade policial vitimou 940 pessoas, se concluiu que houve indícios de excessos em 74% das ocorrências de morte decorrentes de intervenção policial, das quais 26% mostravam fortes indícios, baseado em laudos técnicos, de que as vítimas não portavam arma de fogo, indicando objetivamente que não houve o chamado confronto.

Além disso, esta pesquisa trouxe um outro fato grave e importante. Praticamente em todos os BOs de morte em decorrência de intervenção policial se percebeu que no registro das ocorrências, além da natureza "morte em decorrência de intervenção policial", as autoridades dos Distritos Policias acrescentavam: Espécie: "Excludente de Ilicitude - CPB e Natureza: legitima de defesa (artigo 23, II).

Infelizmente esta pratica continua existindo. No BO da morte de David Nascimento dos Santos, morto em decorrência de intervenção policial em 24 de abril de 2020 na favela do Areião, no bairro Jaguaré em São Paulo, consta a espécieexcludente de ilicitude e natureza legitima defesa, apesar dos indícios de morte sem resistência. Imagens veiculadas pela mídia das câmeras no local mostravam o jovem parado (segundo familiares estava parado aguardando pedido de comida por aplicativo) sendo colocado em uma viatura e horas depois apareceu morto. As imagens, portanto, colocaram em xeque a versão de confronto dos policiais. Poucos dias depois, a Justiça Militar decretou a prisão preventiva de oito policiais militares envolvidos nesta ocorrência.

A conclusão de que houve excludente de ilicitude (legitima defesa) numa ocorrência de morte em decorrência de intervenção policial deve se dar ou não no final da investigação realizada nos Inquérito Policial e Inquérito Policial Militar (IPM), não a priori, no registro inicial da ocorrência.

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Esta classificação absurda nos Boletins de Ocorrências é tão grave como a aberração da ampliação da excludente de ilicitude, porque está direta ou indiretamente induzindo o resultado final do processo investigativo sobre mortes em decorrência de intervenção policial, indicando a justificativa de excludente de ilicitude no Registro da Ocorrência sem que se tenha iniciado qualquer procedimento de apuração.

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Há casos, pasmem, em que o Distrito Policial acrescenta no Registro da Ocorrência:"agente comete o crime sob domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima ".Este registro de ocorrência coloca no BO inciso que o Ministro da Justiça e Segurança Pública quis aprovar, mas foi rechaçado pelo Congresso Nacional.

É para coibir estes "pré-julgamentos" a priori nos BOs sobre morte em decorrência de intervenção policial e garantir transparência e serenidade no processo investigativo que a deputada estadual Isa Penna do PSOL de São Paulo protocolou o PL nº 338/2020.

O Projeto de lei estabelece que: "fica vedada a inclusão nos Boletins de Ocorrências referentes a mortes em decorrência de intervenção policial o acréscimo da expressão excludente de ilicitude ou de qualquer outra de mesma natureza".Além disso propõe que após a lei entrar em vigor o Delegado Geral da Policia Civil do estado de São Paulo, através de Portaria, determine que todos os Distritos Policiais e outras unidades cumpram o que está previsto na lei.

Esperamos que o Parlamento Paulista vote com a urgência necessária este projeto de lei, pois ele contribuirá decididamente com a legalidade democrática.

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O que garante valorização profissional dos policiais Civis, Militares e da Polícia Técnico Cientifica não é a excludente de ilicitude ampliada ou definida a priori no registro das ocorrências, mas sim o estado de São Paulo garantir um piso salarial igual para as três policias com aumento de, no mínimo, 35% a 50% em relação aos valores atuais, tirando-as assim do ranking de uma das policias com menor salário inicial da Federação. Isto somado a melhora das condições de trabalho e proteção, em especial nestes difíceis tempos de pandemia da COVID-19.

É preciso também fortalecer os órgãos de controle interno. A Corregedoria da PM de São Paulo por exemplo só instaura e investiga cerca de 3% dos IPMs relativos a morte em decorrência de ação policial. Os outros 97% de IPMs são instaurados e investigados pelos Batalhões de origem dos policiais envolvidos nas ocorrências de letalidade.

Porque a Corregedoria da PM de São Paulo, que foi criada no final da década de 40 para ser o órgão de polícia judiciária militar não instaura IPMs de mortes em decorrência de intervenção policial? Sem centralizar na Corregedoria todos os IPMs relativos a mortes em decorrência de intervenção policial, a narrativa do governo de que não deseja a letalidade policial é pura demagogia. É também fundamental fortalecer a Ouvidoria da Polícia, criada pelo ex-Governador Mario Covas, que faz o controle social da atividade policial.

Portanto ter uma polícia (Militar, Civil e Técnico Cientifica) legalista, democrática, transparente, com salários justos. Que tenha, no que tange a PM, uma filosofia de policiamento ostensivo, que evite o crime, não busque flagrantes e nem estereótipos de marginais, pois na cultura de senso comum policial estes estereótipos recaem sempre na juventude pobre e negra das periferias. Que tenha uma Polícia Civil priorizada e não sucateada, que qualifique seus Registros de Ocorrências de mortes em decorrência de intervenção policial para facilitar as investigações sem estabelecer juízo de valor a priori, evitando o incentivo à letalidade policial e, ao mesmo tempo, tenha atuação rigorosa, com inteligência policial, para enfrentar às estruturas da criminalidade organizada. Isso somado a uma Polícia Técnico Cientifica forte e independente para realizar as provas técnicas, são condições estratégicas e fundamentais para a construção cotidiana da Policia Cidadã.

 

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