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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Escancarando falsas assimetrias entre Lula e Bolsonaro a partir de um termo comum: populismo

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Por Redação
Atualização:

Felipe Calabrez, Doutor em Administração e Governo pela FGV-EAESP, Professor de Economia na Faculdade Belas Artes e Diretor de Pesquisa da Fundação Podemos

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Não poderia ter sido em hora mais oportuna o lançamento de "Do que estamos falando quando falamos de Populismo", de Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago.

O título já revela um incômodo. Ora, o que afinal quer dizer esse termo polissêmico, de conotação pejorativa e que tem sido usado a torto e a direito por políticos e jornalistas de maneira vaga, sem precisão conceitual, tornando-o na prática um lugar-comum para atacar adversários?

Junto a essa preocupação de ordem conceitual e, digamos, acadêmica, se revela uma outra, de ordem política e, a julgar pelo contexto de publicação do livro, emergencial: O termo populismo tem sido usado para traçar supostas equivalências entre dois fenômenos políticos contemporâneos e seus respectivos líderes.

Ora, seriam mesmo Lula e Bolsonaro duas faces da mesma moeda, um populismo que coloca em risco a ordem democrático-liberal? Em caso de resposta negativa [e ela é, a simetria entre Lula e Bolsonaro é "falsa até a raiz" advertem os autores desde o início] qual a validade de um conceito que se atribui a fenômenos tão díspares?

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Em verdade o termo sempre esteve envolvido em disputas políticas, e mesmo suas formulações teóricas acabam reverberando vieses de época. No entanto, mesmo diante de tamanha polissemia e ambiguidade, os autores nos fornecem três razões para não abandonar o conceito, quais sejam:

"Porque o viés político de um conceito não é um mal em si mesmo, e porque nenhuma teoria é politicamente neutra. Em segundo, porque o próprio debate sobre o que é populismo ensina muito sobre o que é a política. Em terceiro lugar, porque no meio dos jogos de linguagem em que esse termo aparece é possível capturar alguns elementos constitutivos para uma teoria do populismo". (p.86)

Rechaçando as teorias que entendem fenômenos políticos populistas como patologias ou como inerentemente prejudiciais à democracia liberal, os autores elencam o que seriam seus três traços fundamentais: 1) o populismo envolve um discurso que opõe o "povo" às "elites", os "de baixo" contra os "de cima"; 2) o populismo é esteticamente transgressivo, irreverente, culturalmente "popular"; e 3) o populismo é uma força capaz de transformar instituições.

Esses três traços podem aparecer em contextos essencialmente distintos, apelando a públicos distintos e se manifestando também de maneira distinta. Portanto, advertem os autores, não há que se falar em populismo, mas em populismos.

Outra importante advertência é para não cairmos em uma lógica binária de classificação. A pergunta que devemos fazer quando analisamos um discurso político não deve ser se ele é ou não é populista, mas em que grau ele apresenta traços populistas. Mas essa conceituação, ainda preliminar, se torna interessante quando os autores nos convidam a navegar pela história da política nacional.

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A História do Populismo no Brasil

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Tendo sido inicialmente reivindicado pelos integralistas, o termo aparece de maneira esparsa em alguns jornais do início dos anos 1940, em um dos exemplos, pela pena de Carlos Lacerda como acusação contra o PCB. Mas é no fim da década que o termo ganha força na imprensa como arma de ataque diante da possibilidade da volta de Getúlio Vargas pela via do voto em uma aliança entre PTB e o PSP de Adhemar de Barros, político popular e carismático que havia governado São Paulo. Diante da avaliação de que a chapa seria invencível nas urnas começou a gritaria na imprensa conservadora sobre os perigos do populismo ao mesmo tempo em que a expressão foi incorporada pelo vocabulário da própria classe política.

É interessante notar como à certa altura, o termo, inicialmente pejorativo, é assumido por Adhemar de Barros, que o endossa contra a acusação de seus opositores afirmando que o populismo não é hostil à democracia, mas sim sua forma mais verdadeira. A partir daí populismo entra com força no léxico político nacional, preservando seu caráter pejorativo quando usado pelos conservadores ao mesmo tempo em que se popularizava.

O desenrolar da História é aqui bastante conhecido. A temperatura política nacional esquenta com as acusações de Lacerda, político da UDN, contra o "mar de lama" que seria o governo Vargas. A UDN, partido conservador, de cunho moralista e com expressiva votação entre as classes médias urbanas, não se via capaz de ganhar eleições nacionais diante do contexto de relativa incorporação de setores populares na democracia eleitoral. A expressão, vale lembrar, foi desenterrada por Aécio Neves para atacar Dilma Rousseff em 2014 antes de perder nas urnas e contestar o resultado das eleições

Importante recordar como os conservadores da UDN tenham passado, lá por fins do governo JK, a vestir o figurino que atacavam, buscando uma espécie de populismo performativo, uma figura de que se apresentasse como "do povo". De modos simples e caspas no paletó, Jânio Quadros é eleito pelo PTN mas fracassa com um desastrado autogolpe, atiçando fortemente o espírito golpista dos conservadores e levando a um grande acordo nacional para conter os poderes de João Goulart, que, ademais, só pôde assumir por conta de uma ação política pela legalidade encabeçada por um conhecido populista gaúcho, Leonel Brizola.

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Getúlio Vargas, Adhemar de Barros, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, Leonel Brizola. Ninguém saiu ileso da pecha de populista naquele período caracterizado por alguns como "República populista", que foi também o primeiro experimento de democracia de massas do país.

Inevitavelmente, o estudo da política levaria o termo populismo para o ambiente acadêmico. Após o uso pioneiro por Hélio Jaguaribe em 1954, o termo reaparece após o golpe militar de 1964 sob a pena de Fernando Henrique Cardoso, mas é com o clássico trabalho de Francisco Weffort que ele é alçado a um conceito influente.

O contexto aqui é o de um Brasil que se industrializava aceleradamente, produzindo uma forte migração de trabalhadores rurais para os centros urbanos. Nosso caso de Industrialização e urbanização seria analisado sob forte influência das teorias da modernização e, no caso dos dois intelectuais paulistas, sob uma certa ótica marxista das classes sociais, o que os levou a entender a experiência democrática de 1945-64 como marcada pela manipulação das massas por líderes paternalistas e como um modelo incapaz de gerar a emancipação política, mas, ao contrário, mantenedor da submissão e tutela.

Assim, Weffort entendia o populismo como uma política de conciliação de classes e embora até pudesse admitir que ela possa ter promovido algum grau de emancipação econômica aos trabalhadores urbanos ainda pouco organizados, sua ênfase recaía sobre seus limites e contradições, que seriam evidentes. Mais que isso, Weffort sustentava que o populismo, ao tentar preservar os interesses de uma elite conservadora enquanto conseguia ganhos muito marginais aos setores populares, teria preparado o cenário para o golpe de 64, tese à qual os autores do livro se opõem frontalmente, pois, afinal, a "República Populista", mais do que manipulado as massas, teria promovido ganhos efetivos para as classes populares e trabalhadoras e ampliado seu grau de participação política, residindo sobretudo aí, nesses efetivos ganhos políticos e econômicos, e não em uma "conciliação de classes", a explicação para o golpe de 64.

Tutela, manipulação do povo, paternalismo. Essa leitura teórica do processo não pode ser dissociada daquilo a que os autores do livro chamaram gentilmente de "vieses da época", que envolve elementos como uma certa visão paulista crítica ao que fora a "Era Vargas" e a disputas entre a USP como centro de excelência da análise científica e os nacionalistas do ISEB, a "fábrica de ideologias". Podemos até dizer que o trabalho de Weffort carregava um "espírito udenoide". O termo é usado pelo próprio Fernando Henrique Cardoso ao se referir ao colega Weffort em entrevista de 1985, outra interessante informação que o livro nos traz.

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A influência desse antipopulismo de esquerda não ficou apenas no campo acadêmico. No processo de abertura democrática, Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort tiveram importância dentro do partido de oposição ao regime, o MDB, e, com a anistia e fim do bipartidarismo, as disputas em torno dos partidos e dos conceitos reascendeu, levando Brizola a reclamar que o regime militar "deixou nascer sociólogos que teorizaram contra o trabalhismo, chamando-o de populismo".

Para não alongar muito a história que nos trouxe até aqui: com a redemocratização, o trabalhismo perde espaço para uma nova esquerda que surgiria no coração industrial do país, onde se forjou um líder sindical de origem pobre e surpreendente capacidade de mobilização e negociação. De um sindicalismo que não fazia reverências a Vargas ou Jango, Lula criou o que viria a ser o maior partido de esquerda do país e que se afirmava um Partido dos trabalhadores. Após perder as eleições em 1989 para um sujeito que se apresentava como "o novo" e um outsider da política sem sê-lo, e em 1994 e 1998 para Fernando Henrique Cardoso, que prometia enterrar a "era vargas", Lula é eleito presidente em 2002 Mas aqui termos como "classe trabalhadora" já não eram comuns em seu léxico, tendo sido substituído por algo como "melhorar a vida dos mais pobres".

Após um governo que foi capaz de ampliar e estruturar políticas sociais de transferência de renda e aumento dos salários, produzindo redução da pobreza e inclusão pelo consumo, Lula é reeleito em 2006. Mas seu governo é marcado por um escândalo de corrupção intensivamente coberto pela imprensa, que ficou conhecido como "mensalão". Esses elementos explicariam o realinhamento eleitoral ocorrido em 2006, quando Lula é o mais votado entre os mais pobres e perde entre as camadas médias, historicamente sensíveis a elementos morais na política, como o tema da corrupção.

O conjunto de todos esses elementos, aliados aos atributos pessoais do líder carismático capaz de falar de maneira simples e se dirigir aos mais pobres fez surgir um fenômeno político ao qual André Singer chamou de Lulismo, que, enquanto experiência política, seria marcado por dois elementos centrais: reforma gradual e pacto conservador. E, como não poderia deixar de ser, o termo populismo volta a aparecer com frequência na imprensa, já em 2006, sendo associado à figura de Lula. A "acusação" aparece também pela esquerda, pela voz de intelectuais como Vladimir Safatle.

A essa altura o leitor terá percebido que não encontraremos uma homogeneidade nos fenômenos capaz de nos oferecer uma definição precisa do que é o populismo. "Trata-se de um fenômeno ambíguo, para dizer o mínimo, e que se expressa de diversas formas, nem todas democráticas", nos advertem os autores. Mas terá notado também, por outro lado, que uma análise dos jogos de linguagem empregados em torno dele pode muito nos revelar sobre a política brasileira.

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Lula e Bolsonaro são realmente populistas?

É com essa pergunta que os autores nos conduzem ao capítulo final do livro. Mas para respondê-la precisam de um esclarecimento teórico. A perspectiva da qual parte é semelhante àquela de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, para quem populismo é uma lógica política que constrói identidades coletivas. Trata-se de uma forma de mobilização que cria sujeitos políticos, baseando-se numa lógica adversarial entre "povo" e "elites".

Dessa perspectiva, populismo não é bom nem ruim, pois existem diferentes tipos e diferentes graus de populismo. Ele pode ser algo capaz de radicalizar a democracia liberal ou pode ameaçá-la. E é em torno disso que podemos distinguir dois populismos muito distintos.Uma vez que ele é algo que tensiona a normalidade institucional (lembremos, isso pode ser dar em variados graus) e possui uma dimensão transgressiva, ele pode ser de um tipo capaz de expandir direitos, universalizar a cidadania, dar voz a sujeitos subalternizados. Estamos falando aqui de algo capaz de forçar o status quo produzindo mudanças, ainda que graduais. A esse tipo os autores chamam de populismo emancipador.

Mas ele também pode reforçar estruturas de dominação e hierarquia social, atiçar a intolerância, tratar o outro não como adversário mas como inimigo a ser eliminado, apoiando-se no pânico moral. Esse seria um populismo reacionário.

E é precisamente diante disso que estamos hoje. Muito se diz que Lula dividiu o país entre "nós" e "eles", com um discurso contra as "elites". Mas o que diz Lula quando opera essa relação adversarial? E o que diz Bolsonaro quando também o faz? É aqui que a suposta simetria cai por terra.

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Para Bolsonaro, quem está com ele é o verdadeiro povo brasileiro, a "maioria", que ele já afirmou que deve se dobrar à vontade da minoria. É o "cidadão de bem", que lutaria contra os privilegiados. Os privilegiados aqui, a "elite", é um sentido vazio cujo significado a própria lógica do bolsonarismo preenche, e vai desde artistas que seriam privilegiados por financiamento público, estudantes que fazem balbúrdia, meios de comunicação que não o apoiam, movimentos sociais que fazem desordem. Reparem que não há aqui relação direta com poder financeiro. Sob sua lógica, por exemplo, latifundiário seria um simples homem do campo muito trabalhador e que é vítima de movimentos sociais. Aqui, MST é "elite" e latifúndio é "povo".

Poderíamos gastar páginas com exemplos. Mas o ponto importante aqui é que essa lógica opera de maneira a tornar o outro um sujeito ilegítimo de operar na vida social e política. Ele deve ser eliminado. Essa lógica capta bem um caldo de ressentimento social e insufla um "povo" que se vê constantemente lutando contra algo poderoso que sabota a única opção que seria moralmente correta, no caso, Bolsonaro. Rede Globo, governadores, ONGs, STF, TSE, o tempo todo surge um inimigo em suas redes sociais digitais, que seria poderoso e desonesto em suas ações, e que precisa acabar para Bolsonaro poder governar, coisa que nunca fará porque não é de sua lógica.  A consequência aqui, além da atrofia dos mecanismos de gestão pública, é a ideia de que as minorias devem ser esmagadas; elas são sujas, corruptas, inaceitáveis. Quando isso vem de uma visão masculina e violenta, obstinada por armas e com um conceito muito próprio de liberdade ("o desejo perverso de fazer o que quiser, quando quiser, do jeito que quiser, e os incomodados que se mudem"), sabemos o que pode acontecer. E temos visto.

Mas o que diz Lula quando se contrapõe a elites?

Aqui o significado preenchido é totalmente diferente. Sua visão é mais clássica, onde o povo, se não é mais a "classe trabalhadora", é representado pelos mais pobres e mais vulneráveis, razão pela qual sua agenda política não pode ignorar as demandas de "minorias" representadas por movimentos antirracismo, pauta LGBTQIA+ entre outros setores subalternos e marginalizados, atendendo efetivamente ou não tais demandas, havendo ou não caráter demagógico em sua fala. Porque o ponto mais importante aqui é a forma como o "outro" é tomado. Seu antagonismo é mitigado, trata-se de um adversário a ser vencido, não um inimigo a ser eliminado. Para quem duvida disso basta lembrar o modo curioso como o próprio Lula se vangloria em dizer que foi em seu governo que os setores financeiros - a "elite" em sua lógica - ganharam mais dinheiro, enquanto ele governava com o leque de partidos do "centrão".

Os autores nos oferecem diversos exemplos comparados sobre como ambos, Lula e Bolsonaro, operam aqueles três traços fundamentais do populismo: oposição entre "povo" e "elites", estética transgressiva e transformação institucional. Os exemplos são fartos e por isso vale a leitura do livro. Mas cabe comentar que enquanto escrevo, há dois dias das eleições, o candidato à reeleição segue questionando a lisura do processo eleitoral, tensionando o TSE, colocando as Forças Armadas para fiscalizar eleição (!), assim como já declarou que com força no senado irá mudar a composição do STF para lhe favorecer.

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Não me ocorre exemplo mais claro para ilustrar que se trata aqui de um tipo de populismo que não pretende radicalizar a democracia liberal, mas, ao contrário, implodi-la. O retrocesso que ele representa não é apenas político-institucional, mas também civilizacional, à medida em que renega os pilares básicos de tolerância e inclusão, valores caros a um projeto que concebe os seres humanos como sujeitos de direito e membros de uma comunidade na qual estabelecem laços de solidariedade.

A noção de liberdade que defende é deturpada, uma espécie de "liberdade autoritária" que conjuga um neoconservadorismo intolerante com asfixia dos mecanismos públicos produtores de bem-estar (exceto em período eleitoral). Daí seu casamento com um neoliberalismo extremado.  Por isso seu populismo não é conservador. Ele é reacionário.

Urge refletir sobre o Brasil de hoje e "O que estamos falando quando falamos de Populismo" vem em hora fundamental. No mínimo ele nos oferece um conceito que, mais do que um enquadramento analítico preciso, se propõe a ser uma lente interessante para analisarmos a política nacional, chamando atenção para a importância de entendermos conceitos em seu contexto histórico-político. Recomendo, a propósito, que façamos o mesmo a com o lema "deus, pátria e família", últimas palavras proferidas por Bolsonaro em um debate presidencial televisivo.

Os autores terminam com uma aposta, que lhes parece adequada para um país com os níveis de desigualdade do Brasil, que é o populismo emancipador, aquele capaz de tensionar instituições da democracia liberal não para sua implosão, para eliminar seus pontos cegos e produzir mudanças baseadas na inclusão e diversidade.

O leitor pode não estar convencido de que essa estratégia possa de fato radicalizar a democracia-liberal sem prejuízo ao segundo termo do binômio, por exemplo. Ou pode resgatar uma leitura à la Weffort sobre os limites da conciliação de classes que não permitem mais que reformas graduais sob um pacto conservador. Tem para vários gostos.

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O que o leitor do livro não pode é alegar não saber o que está em jogo quando estiver só, na penumbra da cabine eleitoral, no próximo domingo.

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