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'Desmantelando' o Estado Social Brasileiro: causas, estratégias e consequências

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Por Redação
Atualização:

Pedro Cavalcante, Doutor em Ciência Política e Professor de Pós-graduação da Enap e IDP.  

 

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O desmantelamento, desmonte, desestruturação ou desconstrução das políticas públicas é um tema extremamente relevante, porém pouco abordado pela ciência política e administração pública brasileira. O termo em inglês 'policy dismantling' consiste em mudanças de natureza direta, indireta, oculta ou simbólica que resultam em cortes, reduções ou mesmo abolição de orçamento, regras, capacidades e instrumentos da política ou setor governamental[1]. Embora não seja uma abordagem nova, no campo de estudo predominam as análises direcionadas à expansão, implementação e avaliação de ações do setor público. Contudo, o fenômeno ganhou destaque após a crise financeira de 2008 quando algumas nações desenvolvidas, sob a justificativa de restrição orçamentária e necessidade de austeridade fiscal, empreenderam esforços de contração, em especial de políticas sociais e ambientais.

No Brasil, o desmantelamento do Estado Social chegou tardiamente, a partir de 2015, assim como os efeitos da crise financeira internacional, mas encontra-se a todo vapor, trazendo preocupações e questionamentos sobre suas causas, estratégias e consequências. Além da notória recessão econômica, a ascensão de partidos com viés mais liberal e a coalizão majoritária entre os Poderes Executivo e Legislativo em prol da agenda de rigidez fiscal explicam, em boa medida, esse processo. Esses fatores impulsionadores são convergentes com as experiências internacionais do início da década[2].

O policy dismantling, todavia, não é homogêneo, especialmente, em termos de estratégias de implantação, variando de acordo com o grau de prioridade do setor na agenda do governo, custos e benefícios políticos das mudanças, bem como as particularidades da política pública. O primeiro tipo é o mais radical, a extinçãodo programa, como o caso do Ciência sem Fronteiras[3]para estudantes de graduação, finalizado há pouco anos, sem um debate qualificado com base em evidências sobre seus resultados e impactos. A desregulaçãotambém se enquadra como uma estratégia de desmonte, a exemplo das mudanças que vêm ocorrendo na legislação trabalhista brasileira desde 2017. Nesse caso específico, o Estado vem optando por medidas de flexibilização de obrigações e direitos dos trabalhadores, o que tem gerado críticas quanto aos seus efeitos na precarização do mercado de trabalho[4][5]. A terceira forma de desmantelamento é retraçãode programa governamental, normalmente gradual, contínua e pouco visível. As mudanças ocorrem por meio de calibragem dos instrumentos (alterações de subsídios, alíquotas, público-alvo, etc.) ou enfraquecimento da política via inanição (redução de equipes e verbas de recursos), como os exemplos do Pronatec e a recente suspensão das ações de combate a queimadas e desmatamento na Amazônia Legal e Pantanal[6].

É possível notar, objetivamente, a consequência imediata desses processos com base na trajetória das principais funções orçamentárias que compõem os sistemas de políticas sociais e ambientais do governo federal. O primeiro gráfico a seguir retrata o % orçamento executado sobre a Receita Corrente Líquida (RCL) e o segundo demonstra as mudanças nesse percentual em relação ao orçamento federal de 2015, no início da crise econômica. Dois aspectos chamam a atenção: a volatilidade, principalmente nas áreas ambiental e de ciência e tecnologia (C&T) e; a involução dos recursos financeiros de todas políticas, que varia entre 4 a 15%.

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 Foto: Estadão

Fontes: STN e Siga Brasil.

 

O cenário preocupa na medida em que o país reduz um tipo de despesa que, em termos comparativos, já é bem abaixo da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), cerca de 13% contra 20%[7], em uma realidade em que os problemas socioeconômicos não apenas são bem mais graves que nas nações desenvolvidas como vêm se agravando nos últimos anos.

Além disso, os efeitos do desmonte ultrapassam a esfera financeira com riscos diretos e indiretos à gestão pública e, por conseguinte, ao acesso, qualidade e eficiência dos serviços prestados ao cidadão. As mudanças que geram incertezas, instabilidade e retração tendem a refletir negativamente nas capacidades burocráticas de formulação e implementação dos programas, no processo decisório, no aprendizado e na difusão de boas práticas, como também nas condições para coordenação e cooperação intra e extragovernamental, componentes essenciais para o bom funcionamento da administração pública.

Avançar na compreensão do desmantelamento de políticas sociais e ambientais é central para subsidiar um debate qualificado no âmbito governamental, acadêmico e da opinião pública e, com isso, evitar os riscos e externalidades negativas dessas medidas. Vejamos a atual discussão acerca das mudanças no Programa Bolsa Família (PBF). Apesar de uma finalidade positiva, elevar o valor médio do benefício financeiro, qualquer alteração substantiva na política precisa se basear no contínuo aprimoramento de seu desenho de implementação, fundamentado em um sofisticado arranjo de governança multinível, construído durante longos anos e que culminou em um invejável exemplo de cooperação federativa, com resultados comprovados no combate à pobreza e desigualdades. Torna-se, portanto, crucial manter seu modelo de implantação, uma referência internacional em termos de focalização do público alvo, sob o risco de perda de eficiência alocativa que pode comprometer os impactos distributivos do próprio aumento do valor da bolsa, algo que vêm ocorrendo com frequência na execução do Auxílio Emergencial[8].

Em síntese, se, por um lado, a proliferação desse fenômeno apresenta riscos claros ao Estado de bem-estar social, por outro, nasce uma fértil agenda para investigações teóricas aplicadas sobre policy dismantling, que aprofunde nas suas causas, motivações e estratégias dos stakeholderse, sobretudo, nos seus efeitos para a sociedade brasileira. Essas pesquisas se tornam cada vez mais necessárias, porque vivenciamos um pretenso consenso de que essa é a única alternativa viável ao país, muito embora o caminho das nações desenvolvidas tenha se direcionado justamente para o sentido oposto, ou seja, de fortalecimento das políticas e da administração pública.

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[1]Bauer, M. et al. (2012). Dismantling Public Policy. Preferences, Strategies and Effects. Oxford, Oxford University Press.

[2]Andrew Jordan, Michael W. Bauer and Christoffer Green-Pedersen (2013). Policy Dismantling, in: Journal of European Public Policy, Vol. 20, No. 5, 795- 805.

[3]O programa, antes bilionário, mantém bolsas de pós-graduação, sobretudo, com Restos a Pagar de exercícios anteriores (http://www.portaltransparencia.gov.br/programas-de-governo/08-ciencia-sem-fronteiras?ano=2019).

 

[4]ERRATA: texto ajustado em relação à versão original do artigo, que mencionava indevidamente a redução de ações de fiscalização de situação ao trabalho análogo ao escravo. Obrigado a Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia pela correção.

[5]Druck, Graça; Dutra, Renata e Silva, Selma Cristina. A Contrarreforma Neoliberal e a Terceirização: a precarização como regra. Cad. CRH [online]. 2019, vol.32, n.86, pp.289-306.

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[6]https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,por-falta-de-recursos-salles-diz-que-vai-paralisar-as-acoes-de-combate-ao-desmatamento-na-amazonia,70003417062.

[7]https://www.oecd.org/social/expenditure.htmOCDEe https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/ps.

[8]https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,fraudes-em-saques-de-pagamentos-do-auxilio-dao-prejuizo-de-mais-de-r-60-milhoes-a-caixa,70003346219.

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