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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Cultura, barbarie e democracia antirracista

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Por Redação
Atualização:

Benedito Mariano, Mestre em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo, ex-ouvidor da Polícia de São Paulo, assessor parlamentar e professor da Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA.RS.

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Fernanda Azevedo,Mestre em Teatro pelo Instituto de Artes da Unesp, integrante do Coletivo Comum, professora da Escola Livre de Teatro de Santo André e assessora parlamentar.

 

A expressão artística está presente no cerne da invenção da nossa humanidade. Não bastava ao homem pré-histórico realizar as tarefas para sua sobrevivência, era necessário expressá-las, desenhá-las, deixar marcada a memória de seus feitos para o futuro. Assim, hoje, temos a oportunidade de traçar o caminho desta humanidade, de resgatá-lo nos nossos mais remotos antepassados.

Levando em conta uma das vertentes semânticas da palavra cultura, que viria de cultivo, nos deparamos com a dialética presente entre o natural e o artificial, já que o que se cultiva está na natureza, mas o ato de cultivar exige trabalho. Ao produzir cultura nós refletimos sobre a natureza a qual pertencemos, nos tornamos autocultivadores, somos a argila e a mão que a transforma em vaso ao mesmo tempo. Este processo pedagógico de automodelagem é capaz de tecer as regras e modelos que formarão uma determinada civilização.

Enquanto dimensão artística da cultura, o teatro desenvolvido na Grécia Antiga era um importante e potente instrumento de debate político e social (para quem era considerado cidadão naquele período). Era nesta Ágora que se faziam presentes governantes e povo, refletidos nas encenações e colocados em questão por elas, com pitadas de sátira e crítica política presentes, em especial, nas comédias do período de Aristófanes.

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Assim como foram importantes as peças do Teatro Oficina, o Teatro do Oprimido de Boal, e o projeto Uni-Volante, do CPC da Une (Centros Populares de Cultura da União dos Estudantes) que excursionava de ônibus e caminhão pelo Brasil no período anterior ao golpe civil-militar. Espetáculos, shows musicais e exibições de filmes proporcionavam debates sobre cultura popular e a realidade brasileira.

No México, os murais de Rivera, Siqueiros e Orozco foram responsáveis por contar a história da dominação dos povos indígenas e o processo de conquista nas Américas pela visão dos oprimidos. Os Murais de Rivera chegaram a ser arranhados e vandalizados tanto pela direita mexicana quanto pelos stalinistas, tamanho era seu poder político e provocador.

A arte, como expressão cultural, não está dissociada da sociedade, mas isso não quer dizer, no entanto, que esteja em acordo com ela. E, diferente do que alguns possam defender, a arte é muito mais do que um para-raios dos horrores e dores causados por comportamentos sociais que devemos expurgar, ela é, ou pode ser, um instrumento que nos capacita a fazer determinadas escolhas ao invés de outras. Pode ser capaz de tecer e trabalhar em nós o espírito coletivo, necessário para nossa sobrevivência, presente no DNA da nossa humanidade pré-histórica, e nos colocar diante da necessidade de construção de um mundo onde as decisões sejam tomadas em função do bem comum, da comunidade, dignidade e igualdade de direitos e oportunidades para todos e todas.

 

Mas a cultura pode ser também uma forma de dominação e domesticação, já que a cultura da classe dominante é aquela que detém os meios de produção e os edifícios da educação e disseminação de pensamento. "Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie", já dizia Walter Benjamin.

Portanto, trata-se de colocar em questão o que entendemos por arte e cultura e qual o seu papel na sociedade contemporânea. De que forma pode a arte, por exemplo, contribuir no debate político e crítico a respeito da precarização do trabalho, da violência de Estado, da manutenção das desigualdades sociais e opressão de gênero, etnia e na luta antirracista.

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A arte, numa perspectiva libertadora, não tem por finalidade principal tornar as coisas mais leves (como diria a ex-Secretária de Cultura do Governo Federal Regina Duarte) mas sim dar sentido à vida e torná-la mais complexa. Ou será que sair mais leve é o único objetivo daqueles que assistem um filme do Tarkovski, uma peça de Plínio Marcos ou escutam as músicas de Belquior, Aldir Blanc, Chico Buarque de Holanda, Racionais MC's, entre outros? Deste tipo de experiência cultural você pode sair mais reflexivo, mais inteligente, com vontade de mudar o mundo. O que de melhor a arte pode fazer por nós, enquanto sociedade, é abrir as janelas da percepção e promover um encontro nosso com o mundo - compreendendo as estruturas sociais sob as quais ele está apoiado - e com os outros. O resto é entretenimento culinário, de fácil digestão, servido à mesa dos banquetes de socialites.

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É por tudo isso que o governo Bolsonaro e seus seguidores (incluindo aí o seu agora envergonhado ex-apoiador João Dória) fizeram suas campanhas eleitorais pautadas na narrativa de ação violenta da polícia e consideram a arte, a cultura e a educação um grande perigo. Cada um a seu modo - os da extrema direita demonizando e moralizando, e os neoliberais privatizando e elitizando -, tem como horizonte a destruição de uma parte da população e de um determinado tipo de expressão artística.

O governo Bolsonaro está disseminando a ideia de que existe uma dominação marxista no campo da cultura. Para um governo com viés fascista existe um vírus vermelho silencioso, o comunismo, invadindo o corpo da nação através de seus artistas e educadores. Quem tem pensamento crítico vira imediatamente um inimigo a ser combatido. Prega-se o ódio e o preconceito ao mesmo tempo que se mostra desprezo pelos mais de 78 mil brasileiros e brasileiras mortos pela COVID-19, a maioria, pobres das periferias.

O gabinete do ódio, com sua milícia virtual, cria incessantemente narrativas absurdas, destruindo reputações, rebaixando a linguagem e o discurso político, atacando frontalmente a imprensa, a ciência, as universidades e os artistas. Este é um governo que deixa à mingua programas estatais e bolsas de estudos e pesquisas e apoia-se no moralismo arcaico, racista e preconceituoso, herdado dos períodos colonial e imperial.

O Brasil é o país que mais mata mulheres trans e pessoas LGBT no mundo. As ações policiais seletivas vitimam sistematicamente os pobres e a juventude preta e das periferias. Temos hoje um governo federal que tira direitos de trabalhadores e trabalhadoras, desapropria terras indígenas e quilombolas. Este governo despótico não pode admitir que existam caminhos abertos pela poesia para o conhecimento, não pode permitir o cultivo da imaginação política.

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O enfraquecimento das estruturas públicas de cultura são um projeto político, não um acaso. Na última década assistimos um processo de desinvestimento público e diminuição dos orçamentos de Cultura nas três esferas de governo. Em São Paulo, por exemplo, os valores destinados ao setor correspondem a menos de 0,4% do total orçamento do Estado mais rico da federação. Esta é uma área que vive um estado de precariedade profundo, que só veio a se agravar diante da atual crise política, econômica e sanitária.

A construção de uma política pública e popular, uma política de Estado para a cultura, deve passar por conselhos representativos, compostos por membros da sociedade civil e representantes do poder público. Muito já se debateu sobre o assunto, propostas de democratização dos recursos e das estruturas estão no Plano Nacional de Cultura, mas não chegaram a ser implementadas. O Sistema Nacional de Cultura, o SUS Cultural, não está em pleno funcionamento.

Existem várias formas de expressões culturais, mas aquelas que despertam o pensamento crítico, a liberdade, a pluralidade, o respeito e a diferença são as expressões que os fascistas, ditadores e autoritários mais temem, por isso tentam destrui-las. Assim como tentaram destruir a capoeira e o samba, criminalizando-os no Império e no início da República, respectivamente. As manifestações culturais que nascem do povo podem oxigenar a democracia e a liberdade.

Existe no Brasil um preconceito histórico às manifestações culturais dos pobres e negros. Por que uma atividade cultural de música, o funk, não é caso de polícia nos bairros nobres, mas se torna caso de polícia quando estes são realizados em Heliópolis, Guaianazes, Brasilândia, Capão Redondo e Paraisópolis, este último onde uma ação policial improvisada, precipitada e desastrosa, vitimou nove adolescentes e até o presente momento o governo não teve a dignidade de ao menos indenizar as famílias das vítimas?

A cultura pode contribuir para resgatar a resistência negra, que não é contada nos livros oficiais didáticos. A cultura pode ser uma expressão fundamental para enfrentar esta herança oligárquica e racista que formatou a sociedade brasileira e ainda permeia várias instituições, em especial, às policias militares.

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Os que tentam amordaçar e acabar com a cultura do povo coadunam sistematicamente com a barbárie e desprezam a liberdade e os valores democráticos. Mas, citando o grande Chico Buarque de Holanda: "Apesar de vocês"a Cultura Resiste.Vida Longa à Cultura.

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