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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Caminhos para o desenvolvimento sustentável

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Por Redação
Atualização:

José Celso Cardoso Jr., Doutor em Desenvolvimento (IE-Unicamp), desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. Atualmente, exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto

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Márcio Gimene, Doutor em Geografia (UFRJ), é Analista de Planejamento e Orçamento do Governo Federal, Editor da Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento - RBPO e Presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreia de Planejamento e Orçamento - Assecor

No dia 13 de junho de 2022 foi lançado em Brasília o documento "O Brasil Pode Mais: caminhos para o desenvolvimento sustentável". Ele foi produzido sob coordenação da ARCA (Articulação Nacional de Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), um fórum de servidores públicos que congrega diversas associações e sindicatos. Neste âmbito é que este fórum protagonizou, ao longo do biênio 2021-2022, a 1ª Conferência Nacional ARCA, com a realização de seminários sobre temas e questões cruciais ao projeto de desenvolvimento sustentável que se almeja para a sociedade brasileira.

Este documento oferece um resumo consistente e representativo de tudo o que se debateu durante esse processo conferencial, envolvendo servidores públicos, pesquisadores e representantes da sociedade civil. Ele representa, portanto, uma visão plural sobre as diversas políticas setoriais em execução ou em discussão no Brasil, servindo como subsídio programático ao debate eleitoral de 2022.

O documento percorre 14 áreas programáticas de atuação governamental, a saber: 1) Inserção internacional soberana; 2) Desenvolvimento, ciência, tecnologia e inovação; 3) Macroeconomia e regras fiscais; 4) Reforma tributária justa e solidária; 5) Seguridade Social: Saúde, Assistência e Previdência Social; 6) Desemprego zero e trabalho digno para todos; 7) Educação e formação cidadã; 8) Cultura, diálogo social e construção da alteridade; 9) Desigualdades de gênero, raça e etnia; 10) Ordenamento territorial e desenvolvimento regional; 11) Sustentabilidade socioambiental; 12) Infraestrutura econômica e social; 13) Segurança pública; 14) Reforma administrativa e fortalecimento do Estado, das instituições e da democracia.

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Para todas elas, foi feito um esforço coletivo de análise e proposição de alternativas críveis e coerentes para o desenvolvimento brasileiro. Sua contribuição ao debate público pode ser compreendida como um contraponto ao documento "Projeto de Nação", divulgado recentemente por entidades dirigidas por militares do Exército atualmente na reserva.

Veja-se, em primeiro lugar, que o documento "Projeto de Nação" insiste na narrativa de combate aos supostos "inimigos internos", sugerindo que são "corruptos" e "radicais" todos aqueles que não compartilham a ideologia "conservadora evolucionista" defendida no texto. Como exemplo, em sua página 24 está dito que "As poderosas lideranças patrimonialistas e fisiológicas, em grande parte corruptas, e as correntes de pensamento ideológico radical e liberticida, que ocupavam amplo espaço no espectro político-social do Brasil, foram enfraquecidas, o que fortaleceu a coesão, o civismo e a confiança no futuro, por essa imensa maioria da população -- determinada, ordeira e trabalhadora -- que deseja legar um País melhor para seus filhos e netos."

Já o documento "O Brasil Pode Mais" argumenta em sua página 29 que "Na inteligência é necessário garantir que recursos intelectuais sejam empenhados nas áreas de contrainteligência, inteligência externa e econômica, em vez do combate ao suposto 'inimigo interno', que nada mais é do que tentar criar uma guerra política e ideológica de caráter fascista."

Em segundo lugar, o documento "Projeto de Nação" justifica o isolamento do Brasil na diplomacia internacional como se fosse uma reação nacional soberana ao "globalismo". Como exemplo, em sua página 12 está dito que "O argumento central do globalismo é que problemas cada vez mais complexos - como crises econômicas, proteção do meio ambiente e os direitos das minorias - requerem um processo centralizado de tomada de decisões, em nível mundial. Eventualmente e em casos específicos, essa elite tem se aliado a países centrais, organismos internacionais, organizações não governamentais (ONGs) e governos nacionais de quaisquer ideologias, com vistas a projetar seus interesses em escala global."

Por sua vez, o documento "O Brasil Pode Mais" argumenta na página 27 que "(...) o Brasil precisa intensificar a cooperação com parceiros de todos os níveis de desenvolvimento, participando ativamente dos principais debates da agenda internacional, em particular em organismos multilaterais, tanto no plano econômico-comercial quanto nos âmbitos social, político e ambiental. Ao priorizar a solução pacífica de controvérsias, tais como no respeito aos direitos humanos e na promoção do desenvolvimento sustentável, a tradição diplomática brasileira cria as condições necessárias para que o país exerça uma influência crescente no cenário internacional. (...) No entanto, assim como na integração sul-americana, o ativismo da política externa brasileira perdeu fôlego a partir da década de 2010, culminando na situação atual de subordinação à política externa estadunidense e constrangedores retrocessos em temas ambientais e de direitos humanos."

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Em terceiro lugar, o documento "Projeto de Nação" sugere que a cobrança pela prestação de serviços públicos de saúde e educação seja algo desejável. Na página 21 está dito: "Um marco importante para a melhoria de desempenho das universidades públicas, mas que sofreu forte resistência para vingar, foi a decisão de cobrar mensalidades/anualidades". E na página 22: "Vale assinalar os esforços empreendidos por sucessivos governos, a partir do início da década de 2020, com vistas a aperfeiçoar o sistema de gestão e controle dos recursos públicos alocados para o SUS. Além disso, a partir de 2025, o Poder Público passou a cobrar indenizações pelos serviços prestados, exclusivamente das pessoas cuja renda familiar fosse maior do que três salários mínimos"

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Em contraposição, o documento "O Brasil Pode Mais" recorda em sua página 79 que "O SUS padece historicamente de restrições ao seu financiamento, que foram agravadas com o teto de gastos primários da União" e que "O desempenho dos estudantes em avaliações que compõem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) está aquém do esperado, com honrosas exceções em municípios de maior investimento e em algumas escolas privadas. Estas escolas privadas são exclusivamente frequentadas pelas classes médias e altas, que podem pagar elevadas mensalidades, o que gera grande distorção nas igualdades de oportunidades escolares. (...) Além disso, a escola pública ainda está diante do enfraquecimento da gestão democrática. Faltam espaços públicos qualificados à participação dos alunos, famílias e da comunidade no ambiente escolar. (...) No financiamento da educação, o congelamento dos investimentos públicos promovido pela EC nº 95/2016 anula possibilidades de avanços e, na prática, joga por terra o PNE (Plano Nacional de Educação). A desvalorização dos profissionais da educação está em marcha, pois esses profissionais serão impactados negativamente pela recente reforma trabalhista, tendo em vista que a terceirização geral e irrestrita permite que as escolas terceirizem inclusive a contratação de professores, o que pode prejudicar o trabalho pedagógico. Os concursos públicos estão em risco e os novos contratos podem precarizar ainda mais o trabalho do magistério brasileiro."

Os exemplos citados ilustram as diferenças de projeto de país e de sociedade que separam o atual pensamento hegemônico entre as altas patentes do Exército brasileiro e as preocupações dos servidores públicos civis que participam de espaços de construção coletiva como a ARCA. Sem ser exaustiva, a amostra abaixo de temas e propostas contidas no documento "O Brasil Pode Mais" aponta caminhos factíveis para a construção de uma nação soberana, economicamente funcional, socialmente inclusiva, politicamente democrática e ambientalmente sustentável, a saber:

1) Ampliação dos esforços de consolidação do bloco regional da América do Sul, retomando a perspectiva de integração, com realização de investimentos na região e aceitação de maiores custos compartilhados e compromissos mútuos;

2) Apoio aos agricultores familiares e pescadores artesanais, com incorporação ao sistema produtivo e de consumo, apoio para sua organização, acesso a novas tecnologias, assessoria técnica e crédito público subsidiado;

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3) Reversão de medidas de liberalização comercial unilateral e financiamento ao comércio exterior de bens e serviços, sobretudo aqueles com maior valor agregado e conteúdos tecnológicos nacionais;

4) Recuperação do papel das empresas estatais como instrumentos de promoção do aumento da competitividade setorial;

5) Ampliação das capacidades estatais e fortalecimento do planejamento estratégico governamental e da gestão pública;

6) Promoção de uma visão sobre finanças públicas e política fiscal que priorize o planejamento de médio e longo prazos, e que trate o orçamento público como um instrumento fundamental de promoção de um modelo de desenvolvimento socialmente inclusivo, economicamente funcional e ambientalmente sustentável;

7) Promoção ativa do pleno emprego das forças produtivas pelo Estado, e de um ambiente político-institucional que estimule a efetivação do potencial criativo da sua população, coibindo práticas sociais e ambientais predatórias;

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8) Regulamentação do imposto sobre grandes fortunas e elevação das alíquotas sobre o Imposto Territorial Rural (ITR), criação de contribuição social sobre altas rendas das pessoas físicas e ampliação da tributação do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), além de instituir a incidência do tributo sobre veículos automotores marítimos e aéreos;

9) Fortalecimento do SUS, buscando a universalização e reversão do processo de mercantilização destes serviços e garantia de recursos financeiros necessários forma permanente;

10) Articulação entre diversas políticas públicas, conferindo atenção para as múltiplas formas de exclusão social e estabelecimento de programas de garantia de emprego financiados pelo Tesouro Nacional;

11) Reconhecimento do vínculo trabalhista de prestadores de serviços por aplicativos, extinção da modalidade de contrato de trabalho intermitente, garantia da prorrogação automática dos acordos coletivos de trabalho até a assinatura de novo contrato, vedação da possibilidade de prevalência do "acordado sobre o legislado" nas relações trabalhistas;

12) Formação de um conjunto sistêmico, integrado e complementar de políticas educacionais, que deveriam tomar como base uma atualização das estratégias e metas do PNE 2014-2024, com garantia de financiamento estável e cumprimento da destinação de 10% do PIB para a educação;

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13) Reconstrução do setor cultura e fortalecimento do perfil técnico do MinC, dando ênfase a políticas de Estado para a Cultura, sua articulação com outras pastas da administração pública e eficiência/eficácia da gestão;

14) Combate a todas as formas de violência contra a mulher, fortalecendo os serviços de enfrentamento ao feminicídio e medidas preventivas de proteção e de atenção plenas, universalização do acesso à creche para todas as crianças, garantia do pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, promoção de isonomia salarial no mundo do trabalho, enfrentamento da mortalidade e da marginalização das pessoas LGBTQIA+, assegurando-lhes todos os direitos;

15) Reconhecimento de terras indígenas, territórios quilombolas e de outras populações tradicionais e aplicação do Zoneamento Ecológico-Econômico de forma democrática, participativa e multiescalar;

16) Enfrentamento, publicização e criminalização de injustiças ambientais, incorporando obrigações socioambientais e ecológicas a cada empreendimento, no fortalecimento e resgate do licenciamento ambiental efetivo e implantação de políticas efetivas para cumprir o Acordo de Paris;

17) Garantia da oferta e disponibilidade de energia em suas diversas formas, de maneira equitativa em todo o território nacional, com iniciativas especiais para o atendimento a áreas isoladas e ao público de baixa renda;

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18) Transformação do padrão urbanístico, visando a estruturação de cidades mais inteligentes e sustentáveis;

19) Recuperação da política de desarmamento, revendo ou revogando decretos recentes, para restringir e controlar o acesso a armas e munições, despolitização das Forças Armadas e Polícias, e desmilitarização da gestão pública;

20) Reestatização e criação de novas empresas estatais estratégicas e/ou empresas mistas de controle público, a partir de uma Reforma tributária/fiscal progressiva na arrecadação e redistributiva nos gastos públicos, com revisão das regras fiscais e monetárias vigentes e inovação e gestão pública democrático-participativa.

Em suma, com o conjunto de propostas sugeridas acima, o Estado nacional poderá mediar os diferentes interesses presentes em uma sociedade altamente desigual como a brasileira, visando a efetivação dos objetivos fundamentais da República expressos no art. 3º da Constituição Federal. A história das nações desenvolvidas - e, também, das subdesenvolvidas - mostra que as capacidades e os instrumentos de que dispõe o Estado para regular as relações mercantis, mediar a participação dos agentes privados nos assuntos públicos e assegurar bases sustentáveis para o desenvolvimento têm importância decisiva em suas trajetórias de afirmação e construção nacional.

Longe de ser uma obra acabada, o documento apresentado pela ARCA é um convite ao debate público sobre os rumos e as possibilidades de desenvolvimento do País, a partir de uma perspectiva soberana, democrática e inclusiva.

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Afinal, o Brasil pode mais!

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