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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Cadê o Ministério Público?

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Por Redação
Atualização:

Rafael Rodrigues Viegas, Doutorando em Administração Pública e Governo (FGV - EAESP), Twitter: @Rafael_RViegas

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Rayane Vieira Rodrigues, Doutoranda em Administração Pública e Governo (FGV - EAESP)

A interferência das instituições judiciárias brasileiras no funcionamento do sistema político e no processo de elaboração e implementação de políticas públicas é objeto cada vez mais frequente de estudo. Esse tipo de preocupação ganhou força nos anos 1990, por curiosidade acadêmica, mas também por interesse de gestores públicos, políticos profissionais e agentes que poderiam ser alvo de controle por essas instituições, em especial do Ministério Público.

Com razão, a Constituição de 1988 constitucionalizou uma série de direitos, em um verdadeiro projeto de Welfare State, e o próprio mercado financeiro queria entender que "bicho era aquele" - o Ministério Público - que tinha saído da Assembleia Nacional Constituinte: elevado ao patamar de zelador do Estado de direito e da democracia e de fiscal de políticas públicas; formalmente autônomo em relação ao governo e incumbido de relevantes atribuições, não mais restritas à esfera criminal; os seus membros vitalícios e gozando de prerrogativas, tais como independência funcional[1].

Com o passar dos anos, ao regulamentar aspectos da Constituição de 1988, mudanças incrementais ampliaram ainda mais o espaço formal de ação dos membros do Ministério Público, em matéria de saúde, educação, infância e juventude, consumidor, licitações, meio ambiente, habitação e urbanismo etc. Com isso, ressaltamos que a instituição não foi projetada - e seguiu sendo ampliada - não só para combater a corrupção. Essa é apenas uma, entre tantas outras atribuições igualmente relevantes, que vêm acompanhada da capacidade de responsabilizar os gestores públicos por seus atos que atentem contra direitos coletivos, inclusive adotando medidas preventivas.

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Todavia, os acontecimentos relacionados à chamada Operação Lava Jato, mas, precisamente, no que tange à pandemia de Covid-19, foco desta breve discussão, têm revelado que a "missão" constitucional do Ministério Público não está se concretizando, ou pelo menos apresenta falhas relevantes.

Há quase um ano, ressaltamos a "hibernação" do Ministério Público Federal em relação à conduta do presidente Jair Bolsonaro[2] e as ações dos Ministérios Públicos estaduais em sentido oposto, que se adiantaram às decisões de gestores municipais e estaduais em importantes decisões de controle e disseminação do vírus[3]. Era uma situação paradoxal, que serve para pensar como o Ministério Público precisa ser visto como uma instituição multifacetada e repleta de diferenças, acerca de aspectos organizacionais e contexto de atuação.

No primeiro caso (Federal), a situação persiste, mas, no segundo (Estados), a euforia não foi mantida. Por exemplo, o caso do Ministério Público do Estado de São Paulo, que chegou a oferecer um "empurrão jurídico" em João Doria (PSDB) para que adotasse medidas de lockdown em março de 2020, assiste às ações questionáveis do governador, como definir templos religiosos atividade essencial e a não divulgação dos dados dos testes da Covid-19 pelo governo paulista[4]. A questão é que, diferente da Lava Jato, que se desenvolveu na esfera federal, logo, dentro da atribuição do Ministério Público Federal, a pandemia impõe que todos os Ministérios Públicos atuem, independentemente se federal ou estadual.

No âmbito da União, Jair Bolsonaro não só retardou a compra de vacinas, como buscou convencer a população de que elas não são seguras ou adequadas no combate à pandemia. Promoveu aglomerações, negou-se ao uso de máscara, tentou impedir que Estados e municípios adotassem medidas de distanciamento social e destinou verbas públicas para produção de medicamentos sem eficácia comprovada. Sob a gestão do ministro Pazuello, pacientes morreram em Manaus por falta de oxigênio. E, como sabemos, o presidente foi seguido por governadores e prefeitos, não apenas em postura negacionista, sobretudo medidas, em tese, criminosas, por ação e/ou omissão, que estão custando a vida de milhares de cidadãos brasileiros, e, por decorrência, causando um estrago imensurável para aqueles que ficam e na imagem do país no exterior.

Em meio à tragédia sem precedentes, uma pergunta não quer calar: cadê o Ministério Público? Essa pergunta fazemos diante de uma situação real de hipossuficiência da sociedade civil, ou seja, impossibilidade concreta e não uma mera ficção jurídica, devido às regras de isolamento que impedem o cidadão de sair às ruas para protestar contra o governo e lutar pelo que há de mais básico: o direito à vida.

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E são muitos os procedimentos cíveis e criminais levados a cabo pela instituição, seja o Ministério Público Federal, sejam os estaduais, na realidade somados são centenas de milhares todos os anos, instaurados para o controle da administração pública. Em sua atuação judicial e extrajudicial, atua, muitas vezes, como elaborador de políticas públicas[5], especialmente em matéria de saúde pública, não raro invadindo atribuições que não são suas[6]. Entretanto, a mesma lógica parece não funcionar em um dos momentos mais graves que União, Estados e municípios atravessam, de colapso do sistema de saúde.

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O que está em vista é a atual postura dos Ministérios Públicos e de seus integrantes, no que diz respeito aos possíveis crimes e violações de direitos cometidos, reiteradamente, pelo presidente da República e sua equipe, e quiçá por governadores e prefeitos no combate à pandemia.

Tomando o caso da União em particular, o homem de confiança do presidente, o procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, chefe do Ministério Público Federal, opta por não acionar as ferramentas jurídicas que lhe estão disponíveis e tem sido bastante criticado por isso. Entrementes, no estatuto do Ministério Público da União, do qual o Federal faz parte (LC n. 75/93), há mecanismos formais que poderiam ser acionados para investigar a conduta do próprio PGR, porém nada de concreto que altere esse quadro é feito pelos demais integrantes da instituição, e estamos falando da sua cúpula, que compõe o Conselho Superior (CSMPF), com poder de agir (espaço formal de ação) para designar um integrante a fim de investigar e, se for o caso, processar o PGR, cível e criminalmente. Ocorre que interesses corporativos parecem acima de qualquer coisa.

Assim, a atuação do Ministério Público Federal na pandemia é um caso emblemático e (in)digno de registo histórico, acerca de como se deve questionar a autonomia formal da instituição em relação ao governo. Mas, diz muito - e talvez até mais - sobre aspectos informais que definem o seu funcionamento concreto, que se sobrepõem ao arranjo formal da Constituição de 1988 e aos demais estatutos jurídicos que conformam essa organização pública[7] - o que, do ponto de vista analítico, pensamos que provavelmente se estende aos demais Ministérios Públicos estaduais, a ser aferido em cada organização e contexto.

Em suma, formalmente, o Ministério Público, embora não seja um só, pode ser encarado como uma das mais importantes instituições brasileiras, uma burocracia estratégica que recebeu da Assembleia Constituinte incumbências cruciais para o funcionamento adequado do Estado e da democracia, para tanto foi dotada de autonomia e poder de agir destinado aos seus integrantes para evitar o que está aí: violações de direitos, crise sanitária, autoritarismo... a morte. No entanto, como o Ministério Público está lidando com a pandemia renova as preocupações e desconfiança sobre a instituição, notadamente sobre como seus integrantes se comportam em diferentes situações e como levam a efeito as suas prioridades em detrimento do interesse público. Um suposto padrão de ação que se poderia aventar a partir da Lava Jato, no caso do Ministério Público Federal, e da atuação do Ministério Público em matéria de políticas públicas nos Estados, ou seja, no sentido da voluntariedade e combatividade, não se reproduz na pandemia.

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Por tudo isso, está mais do que evidente a necessidade de aprimorar os controles democráticos sobre a instituição e a premência de compreender melhor os sentidos políticos da ação dos seus integrantes. Os Ministérios Públicos não funcionam no vácuo político e social, portanto, é preciso entender o que leva procuradores e promotores de justiça, nos diferentes níveis da federação, a agir com rigor em determinados momentos, muitas vezes com excesso (em dada conjuntura política e contra agentes específicos) e, em outros, que justificariam ainda mais a sua razão de existência, praticamente sumir, quando mais se precisa deles.

[1] Conferir: ARANTES, Rogério. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo, Educ-Sumaré, 2002; KERCHE, Fabio. Virtude e limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil. São Paulo: Edusp, 2009.

[2]Conferir: VIEGAS, Rafael Rodrigues. O "empurrão jurídico" em Doria e a "hibernação" do Ministério Público Federal. 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/o-empurrao-juridico-em-doria-e-a-hibernacao-do-ministerio-publico-federal/

[3]Conferir: RODRIGUES, Rayane Vieira. O papel do Ministério Público no combate ao coronavírus. 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/O-papel-do-Minist%C3%A9rio-P%C3%BAblico-no-combate-ao-coronav%C3%ADrus

[4]Ver: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/20/sp-covid-19-placar-testes-janeiro.htm

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[5] SAMPAIO, Marianna; VIEGAS, Rafael Rodrigues. Ministério Público: de fiscal a elaborador de políticas públicas. 43o Encontro Anual da ANPOCS, 2019. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/349664065_Ministerio_Publico_de_fiscal_a_elaborador_de_politicas_publicas

[6] RODRIGUES, Rayane Vieira. Ministério Público e atuação extrajudicial em Saúde: o caso do MPSP. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do ABC, programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. São Bernardo do Campo, 2020.

[7] VIEGAS, Rafael Rodrigues. Governabilidade e lógica das designações no Ministério Público Federal: os "procuradores políticos profissionais". Revista Brasileira de Ciência Política, 2020. DOI:https://doi.org/10.1590/0103-3352.2020.33.234299.

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