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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

As emoções da descontinuidade pública: um relato pessoal

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Por Redação
Atualização:

Fernando Nogueira, professor da FGV EAESP e pesquisador do CEAPG

 

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Em 2006, concluí meu mestrado em Administração Pública e Governo em que estudei, sob orientação do prof. Peter Spink, o que explica a continuidade ou descontinuidade de uma política pública em nível municipal. Com o fim do segundo turno das eleições municipais em todo o Brasil, o fantasma da descontinuidade volta a rondar as milhares de prefeituras em todo o país. A proposta deste breve ensaio é expandir um aspecto pouco explorado pela literatura acadêmica: as muitas emoções da descontinuidade pública. 

Com base nos poucos estudos existentes à época, caracterizei a descontinuidade como a "[...] interrupção de iniciativas, projetos, programas e obras, mudanças radicais de prioridades e engavetamento de planos futuros, sempre em função de um viés político, desprezando-se considerações sobre possíveis qualidades ou méritos que tenham as ações descontinuadas." (Nogueira, 2006, p. 12). Como supostas consequências desse fenômeno, "[...] tem-se o desperdício de recursos públicos, a perda de memória e saber institucional, o desânimo das equipes envolvidas e um aumento da tensão e da animosidade entre técnicos estáveis e gestores que vêm e vão ao sabor das eleições." (Nogueira, 2006, p. 12)

Na dissertação, baseada em três estudos de casos, aprofundei possíveis razões que explicassem a continuidade das políticas estudadas e identifiquei fatores técnicos, políticos, discursivos. Noto, olhando agora, que deixei de lado o aspecto mais emocional dessa discussão, até levemente mencionado na definição acima (quando cito desânimo e animosidade). Nos últimos anos, tive a oportunidade de trabalhar na prefeitura de São Paulo e viver parte do ciclo que eu tinha conhecido antes como pesquisador. Passei por boa parte das experiências estudadas: ajudei a criar estruturas, políticas e programas novos, vi continuidade de parte de programas existentes e vivi, literalmente, a experiência da descontinuidade de parte desses projetos. Refletindo sobre esse período, compilei uma breve lista das emoções que afloram dessas vivências

 

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Medo

O temor da descontinuidade sempre está presente na gestão pública brasileira. Começa um governo novo, e a cada dia que passa ele está mais perto do fim de seu mandato e da próxima troca de governo - e possivelmente de prioridades. Mas há momentos que tornam esse medo mais presente, como crises e trocas de comando nos mais diferentes níveis. A ameaça de troca de um secretário, por exemplo, já vem carregada de questionamentos, nem sempre explícitos, sobre o que ficaria ou não com essa mudança.

 

Ansiedade

Junto com o medo, a ansiedade: tensão com o futuro imaginado. Traz grande peso emocional, resultando em noites mal-dormidas, irritabilidade, dificuldade de concentração. Um companheiro quase sempre presente é o pessimismo, ou até o niilismo: será que o que estamos fazendo tem utilidade? Qual o sentido de lutar, de se esforçar, se é provável que o futuro gestor pare tudo ou até reverta o que tentamos fazer? Em sua forma mais extrema, essa combinação de sensações pode levar à inação, ao imobilismo.

 

Egoísmo

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Na economia organizacional local, a ameaça de descontinuidade pode também favorecer o aumento de comportamentos egoístas, dificuldade relações de parceria dentro e fora dos setores. Na melhor ilustração do ditado "farinha pouca, meu pirão primeiro", parece haver uma guerra não-declarada: se a nova gestão só vai manter algumas áreas, que seja a minha. Não vou gastar energia ou recursos ajudando os outros.

 

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Insegurança

Uma das maiores ameaças que situações de descontinuidades trazem são uma sensação de que as regras do jogo mudaram, mas não se sabe bem quais nem como. É claro que os manuais formais continuam os mesmos - constituição, leis, decretos, normas. Mas as regras não-escritas, que guiam tanto do nosso comportamento diário, ficam em suspenso. Nessas horas, a gente se agarra a qualquer fio de informação que pareça reduzir essa insegurança, gerando terreno fértil para fofocas, boatos, rumores e análises apressadas - ou mal-intencionadas.

Nem só de emoções negativas se nutre a experiência. Um senso de urgência pode aparecer, contribuindo com uma visão mais clara da situação e a priorização do que é realmente essencial - isso precisamos manter, aquilo dá pra deixar de lado. São boas épocas para avaliar, refletir, sistematizar aprendizados. Esse senso pode vir acompanhado de criatividade e vontade de resistência, procurando meios de aumentar as chances de que o que é essencial seja preservado. E, se os laços com diferentes áreas da organização foram devidamente nutridos ao longo do tempo, pode reforçar comportamentos de solidariedade e altruísmo, ao contrário do egoísmo citado acima. Pequenas diferenças e picuinhas podem ficar de lado frente a um possível novo adversário comum. 

Quando a descontinuidade de fato acontece, ela toma duas formas principais. Uma é mais abrupta e clara: trocas, demissões, interrupções, reversões. Outra é mais lenta e opaca: indefinições, faltas de posicionamento, adiamentos, mensagens ambíguas ou vagas. O primeiro tipo é, ironicamente, mais fácil de processar. De forma bem mais concentrada, sente-se uma combinação de tristeza, inconformidade, luto, alívio e resignação. É chance de partir para novas experiências e lutas. O segundo tipo tende a prolongar as piores emoções negativas acima listadas. Mesmo tentativas de resistência, muitas vezes bem-sucedidas, são mais fáceis frente à clareza da vontade de descontinuar algo. É difícil resistir o que não se define.

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Termino o texto com três breves reflexões. 

1) A descontinuidade nunca é um fenômeno linear, de soma zero. É, como toda a gestão pública, uma truncada e confusa corrida de revezamento. Você manteve parte do que outros que vieram antes criaram, e seus colegas atuais e os que vierem no futuro também o farão, em alguma medida. Muito além das estruturas, decretos e programas formais, cada pessoa que passa deixa também sua pequena contribuição para a cultura de seu departamento, secretaria, prefeitura. Não deixa de ser outra forma de continuidade. 

2) Não podemos nunca esquecer, como bem apontado pelo prof. Spink, que descontinuidade é também um sinal vital de democracia. De que serviria alternância de poder se fosse garantida a continuidade absoluta de políticas e prioridades? Assim como eu tive a chance de fazer parte de algo novo e criativo, é a descontinuidade que dá essa oportunidade para os futuros gestores públicos. Não é só algo a ser lamentado; faz parte do jogo democrático. 

3) Esse relato é necessariamente parcial, já que vem de alguém que ocupou um cargo comissionado e não faz parte da estrutura estável do setor público. Servidores concursados das carreiras de estado certamente terão interpretações diferentes das emoções relatadas aqui. Nesse sentido, compartilho uma última emoção: o otimismo cauteloso. A maioria dos servidores efetivos com que pude trabalhar ao longo de três anos demonstrou a mais saudável combinação de comportamentos possível. Abertura ao novo e disposição ao diálogo com nós, forasteiros e colegas temporários; paciência e generosidade com nossas falhas, desconhecimentos e ingenuidades; vontade de preservar inovações interessantes; resiliência e força em interagir e filtrar as próximas e contínuas levas de comissionados, parceiros, consultores, etc. Parecem ter sabedoria para implementar o inverso da máxima atribuída a São Francisco de Assis: possuem força para manter o que precisa ser mantido e resignação para aceitar o que é inevitável de ser mudado. 

 

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Referência

NOGUEIRA, Fernando do Amaral. Continuidade e Descontinuidade Administrativa em Governos Locais: Fatores que sustentam a ação pública ao longo dos anos. 2006. 139 f.. Dissertação de Mestrado, apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2006.

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