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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Adeus, templário do apocalipse

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Por Redação
Atualização:

Guilherme Casarões, Doutor em Ciência Política (USP) e Professor da FGV - EAESP

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Ernesto Araújo caiu. Foi tarde. Nem sequer deveria ter sido chanceler, para início de conversa. Um diplomata limitado, inexperiente, com sérias dificuldades de se expressar em público, prolixo e evasivo. Encantou o núcleo bolsolavista graças a um texto risível em que pintava o recém-eleito presidente Donald Trump como único salvador do Ocidente. Chegou a ministro graças a demonstrações de subserviência, obtusidade ideológica e descompromisso com a verdade.

Numa mistura entre comentarista de portal de notícias, beletrista amador e cavaleiro templário, caiu nas graças da militância ao encampar, sem restrições ou vergonha, a guerra cultural bolsonarista. Não demonstrou interesse ou preocupação em promover a inserção do Brasil no mundo, seja pela manutenção das linhas estratégicas, das tradições diplomáticas ou das parcerias políticas e comerciais do país.

Em vez disso, Ernesto passou dois anos embevecido pelo acesso aos círculos do poder da extrema direita, entusiasmado com a bajulação fanática dos seguidores digitais e hipnotizado por sua própria pseudoerudição. Nos discursos, entrevistas e postagens oficiais, o ex-chanceler escolhia cuidadosamente palavras, símbolos e referências históricas que deixassem claro tratar-se de um iniciado. A certa altura, chegou a acreditar que se transformaria no ideólogo do reacionarismo tupiniquim.

Concentro esse obituário político na trajetória de Ernesto Araújo, e não propriamente nas realizações concretas (ou na falta delas), por acreditar que em sua confusa e caricata personalidade reside o mais trágico dos legados diplomáticos destes 27 meses. O ex-chanceler é a demonstração cabal de que, diante de um presidente torpe e um ministro servil, é mínima a capacidade institucional de burocratas de Estado em conter os danos de um governo à deriva.

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O servilismo de Ernesto levou ao maior processo de desmonte diplomático de nossa história. Sob seu comando, o Itamaraty, outrora medido pela excelência de seus servidores, foi tragado para a irrelevância. A enorme maioria do serviço exterior brasileiro, que não compactua dos delírios do antigo chefe, viveu esse período acuada, envergonhada e desmoralizada.

Não bastassem as perseguições e censuras, houve um tipo inédito de aparelhamento intelectual. A Fundação Alexandre de Gusmão, braço acadêmico do ministério, acostumada à realização de debates sérios e plurais, converteu-se no epicentro da promoção governamental de teorias conspiratórias, negacionismo científico, revisionismo histórico, além de teses tão bisonhas quanto radicais, frequentemente amplificadas pelo próprio chanceler.

Incapaz de exercer o mínimo de contenção política sobre seus pares, Ernesto, conivente, permitiu que manifestações públicas de representantes do Brasil virassem motivo de chacota internacional. Diplomatas estrangeiros não raro demonstraram estupefação com as mentiras e a linguagem inadequada, virulenta e hostil de membros do governo - de ministros a embaixadores de carreira - contra chefes de Estado, partidos políticos e veículos de imprensa.

Por fim, o fundamentalismo ideológico-religioso de Ernesto - que chegou a comparar, com lágrimas nos olhos, Bolsonaro a Jesus Cristo - legou ao Brasil inédito isolamento internacional. Em seu blog pessoal, inaugurado às vésperas da eleição presidencial, o desconhecido diplomata postulou sua missão como o combate ao globalismo, por ele definido como "a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural (...), um sistema anti-humano e anti-cristão".

Empunhando a cruz da Ordem de Cristo e uma espada imaginária, o ex-chanceler fez da política externa sua cruzada pessoal. Antagonizou sócios importantes, acusando-os de participar da agenda comuno-globalista, e jogou por terra nosso produtivo engajamento multilateral. A certa altura, quando Ernesto não ordenava diretamente a retirada brasileira das principais mesas de negociação, os demais países se ocupavam de isolar o Brasil, país que já não mais reconheciam.

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Concordo com colegas que se prontificaram em dizer que o pior chanceler que tivemos merece a lata de lixo da história. Mas não sem antes ser julgado por toda a destruição de que foi cúmplice, da devastação ambiental à hecatombe sanitária, além dos prejuízos inestimáveis à imagem do Brasil lá fora e à dignidade dos brasileiros, incluindo seus colegas de carreira.

Ernesto Araújo foi tarde, mas, diante de todo o mal que causou ao país, não será esquecido tão cedo.

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