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Abram as gaiolas, as mulheres desejam sair

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Por Redação
Atualização:

Ananda Marques, Mestra em Ciência Política pela UFPI (Twitter: @abmrqs | e-mail: abmrqs@gmail.com)

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Elena Ferrante é uma febre que dura anos. Com sua tetralogia napolitana, alcançou a fama sem ter um rosto e agora, finalmente teve um de seus livros transformado em filme por uma mulher. A adaptação de "A Filha Perdida", terceiro romance da escritora italiana, estreou na Netflix dia 31 de dezembro de 2021, presenteando fãs com uma história intrincada e obscura dirigida por Maggie Gyllenhaal.

Leda é professora de literatura e vai passar férias numa ilha paradisíaca. Lá conhece uma jovem mãe, sua filha e uma boneca. Nina, Elena e Neni a fazem lembrar de si mesma na juventude. Observar a interação das três, afinal, "uma mãe não é nada além de uma filha que brinca", permite que Leda mergulhe nas próprias memórias e atravesse uma sinuosa estrada, não sem antes sofrer o impacto desse reencontro com a própria história.

A atuação de Olivia Colman e Jessie Buckley como Leda estão impecáveis, chama particular atenção a habilidade da primeira em traduzir no silêncio todo o fluxo de consciência que fervilha no livro. Leda é uma mulher que fez como mãe o inaceitável para a sociedade patriarcal na qual vivemos, ela não suportou a maternidade, escolheu o próprio desejo em detrimento da anulação de si. O resultado é uma relação fraturada pela mágoa com as duas filhas e uma culpa que a leva a comportamentos extremos.

A maternidade exposta pelo filme é ao mesmo tempo terrível e doce, o amor materno é carregado de ternura e sofrimento, e o apagamento da mulher que virou mãe, cuidadosamente revelado. A série de acontecimentos e comportamentos inexplicáveis serve de alerta para as inúmeras camadas de uma experiência geralmente idealizada e retratada como sagrada. Mas as mães não são santas, elas são gente.

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Muitos leem Ferrante e acreditam que pela qualidade da escrita há de ser um texto autobiográfico e que ela é necessariamente uma mulher por isso, mas, me parece que o pseudônimo serve justamente para que a vida de quem escreve importe menos que os livros escritos, como ela mesma diz, "acredito que, após terem sido escritos, os livros não precisam dos autores para nada. Se tiverem algo a dizer, encontrarão, mais cedo ou mais tarde, leitores; caso contrário, não".

Pouco importa, de fato, quem é a pessoa por trás do nome. Nas entrevistas e ensaios publicados, transparece que Ferrante é um projeto literário, uma elaboração, uma proposta de genealogia feminina na literatura, como ela mesma nomeia em "Frantumaglia" (Intrínseca, 2017). Faz muito sentido que seus livros tratem de temas do que se concebe como um universo feminino através de vozes mulheres. E nela, as mulheres são diversas e complexas, nunca apenas uma camada, e de forma alguma, atreladas somente ao biológico, apesar da materialidade dos corpos que se manifesta. Nela, o que usualmente é chamado de feminino se mostra, humano.

Na coluna publicada originalmente no The Guardian em 2018 e generosamente traduzida pela doutoranda em Estudos Literários, Tatianne Dantas, Ferrante discute justamente que devido à sua compreensão da necessidade de uma genealogia feminina, não interfere nas produções de mulheres a partir de sua obra. Ela explica que "estamos já todas há tanto tempo dentro da gaiola masculina e agora que ela está cedendo uma mulher-artista deve ser absolutamente autônoma, a sua pesquisa não deve encontrar obstáculos, sobretudo se é inspirada no trabalho, no pensamento, de outras mulheres". Eu diria que a escolha da escritora é não apenas por uma genealogia feminina, mas por uma prática feminista.

O filme é extremamente bem-sucedido ao contribuir para essa genealogia da qual Ferrante fala, tem o efeito de abrir as gaiolas masculinas da arte na qual estivemos ao longo da história. Por exemplo, é especialmente emocionante que Leda cite um trecho do poeta irlandês W.B. Yeats, pois "The Second Coming" é o poema do qual Joan Didion tirou o título do ensaio que lhe trouxe notoriedade e do livro que se seguiu - Rastejando até Belém; e não à toa, o título do documentário sobre ela vem também daí, "The Center Will Not Hold" (também disponível na Netflix). Com a morte de Didion dia 23 de dezembro, me pareceu uma fortuita homenagem, ainda que por acaso.

Outra referência inquietante é "A Casa de Bonecas" do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, a protagonista Nora lidou com os fardos da maternidade e o desejo de fuga ainda no século XIX. A reação negativa foi tamanha que o autor criou um final alternativo no qual ela não abandonava a família, violentando a própria obra para que outrem não o fizesse.

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Temos ainda o assombroso aparecimento de insetos ao longo da história, primeiro, larvas nas frutas, depois uma cigarra grávida e por fim, um verme sai da barriga de uma boneca. Clarice Lispector aparece na lista de quarenta livros de escritoras recomendados por Ferrante, justamente com "A paixão segundo G.H.". E, curiosamente, a música tema de Leda no filme é uma versão instrumental de "It's a Man's Man's Man's World" de James Brown que diz "este é um mundo de homens, mas não seria nada sem uma mulher ou uma menina".

"As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender", é como Ferrante começa o livro e parece ser essa a intenção de seus textos, falar do que é difícil e que não conseguimos entender, das experiências historicamente silenciadas e ocultas, ou melhor, obscuras. O ponto cego é um lembrete de que não podemos captar tudo, há sempre o inexplicável à espreita. A filha perdida anuncia o que Sontag bradou em "Contra a interpretação", uma erótica da arte, "precisamos aprender a ver mais, a ouvir mais, a sentir mais", precisamos abrir as gaiolas, pois as mulheres desejam sair.

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