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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

A miopia fiscal dos entes públicos brasileiros.

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Por Redação
Atualização:

Janilson Antonio da Silva Suzart, Doutor em Controladoria e Contabilidade pela FEA-USP. Colabora com o Instituto de Contabilidade Pública e Democracia (ICPD).

Robson Zuccolotto, Pós-doutorado em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Contábeis da UFES.

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Diones Gomes da Rocha, Doutor em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP. Colabora com o Instituto de Contabilidade Pública e Democracia (ICPD).

 

A situação financeira da maioria dos entes públicos brasileiros já não era boa antes da atual pandemia causada pela COVID-19. A necessidade de ampliar a oferta de leitos equipados para atender os doentes da COVID-19 é apenas um exemplo do quão ruim era a situação.

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Não há dúvidas que ante o risco de colapso do sistema de saúde pública e do aumento do número de óbitos, em razão da precária estrutura existente, era necessário (e ainda está sendo) realizar gastos para aquisição de respiradores (e outros equipamentos), contratação de pessoal técnico, montagem de hospitais de campanha, abertura de novos leitos de unidades de terapia intensiva (UTI), aquisição de equipamentos de proteção individual etc. Contudo, não se pode esquecer que a "saúde" financeira estatal requer cuidados, e que alguns entes públicos brasileiros já estavam (ou deveriam estar) em "tratamento na UTI", antes mesmo da COVID-19.

Diversos são os "sintomas" dos males que afetam a "saúde" financeira do setor público brasileiro, em especial: (i) redução dos serviços ofertados à população; (ii) atrasos e parcelamento dos salários de servidores; (iii) inadimplência junto a fornecedores e outros credores; (iv) redução dos investimentos em áreas como infraestrutura, educação etc. Sem esquecer os efeitos da corrupção e da má gestão, a maioria dos "sintomas" citados se relacionam com a miopia fiscal que assola a gestão financeira governamental há algum tempo.

A miopia fiscal, de acordo com Galle[i], pode ser entendida como a alocação dos recursos públicos privilegiando a visão de curto prazo. Desse modo, os orçamentos são definidos para a obtenção de benefícios de curto prazo, sem se preocupar com investimentos a longo prazo ou com a formação de reservas para momentos futuros. Os gestores públicos acometidos pela miopia fiscal não terão incentivos para sacrificar o gasto de hoje (quase sempre vinculado com a tentativa de melhorar o desempenho eleitoral do próprio gestor ou de seu candidato à sucessão) para poder realizá-lo amanhã.

Esse curto horizonte temporal no Brasil, termina sendo de no máximo quatro anos, ou seja, sujeita-se ao ciclo eleitoral. Porém esse fenômeno não é exclusividade brasileira, como atesta Wessel[ii] ao explicar o fenômeno à luz do cenário estadunidense. Segundo ele, "o povo norte-americano e seus representantes eleitos se concentram muito pouco sobre as implicações a longo prazo das decisões orçamentárias que tomamos ou evitamos tomar hoje" (tradução livre). Para Wessel, a miopia fiscal tem como consequência déficits, aumento do endividamento público, redução da capacidade de realizar novos investimentos, desorganização e aumento da instabilidade ao se atravessar por uma crise econômica etc.

Apesar de, em alguns aspectos, Wessel pareça padecer de certa miopia, dado que seu enfoque é demasiadamente concentrado no comportamento da despesa no longo prazo, o conceito de miopia fiscal traz à tona a necessidade histórica, sobretudo no Brasil, de se alinhar o equilíbrio entre receitas e despesas. Em outras palavras, o financiamento das políticas públicas depende das fontes de receitas (sistema tributário e fontes de obtenção de crédito), e não apenas do mero cálculo dos efeitos de novas despesas no longo prazo. Mesmo que a CF/1988, em seu artigo 3º, estabeleça, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a "erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais", nosso sistema tributário foi institucionalmente desenhado dentro de um sistema político não consociativo, tornando-se mais permeável aos interesses de grupos econômicos específicos e inviabilizando o alcance dos princípios tributários da equidade, progressividade, neutralidade e simplicidade.

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Se por um lado a constitucionalização do sistema tributário visava a evitar os arroubos autoritários e a instabilidade do sistema, por outro acabou dificultando a criação de uma dinâmica que facilitasse a gestão tributária em períodos de crescimento, de recessão e de estabilidade. Isso se evidencia no baixo índice de reformas efetivas realizadas no Brasil e na dificuldade de os diferentes governos promoverem políticas tributárias distintas entre si e suas diferentes bandeiras ideológicas.

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Soma-se a isso, os efeitos do complexo federalismo fiscal brasileiro, demasiadamente centralizado e com complexas estruturas de repartição; da elevada fonte de arrecadação federal, concentrada em contribuições que não são compartilhadas com os entes federativos; e das inúmeras renúncias fiscais que acabam afetando o caixa dos entes subnacionais.

Do lado da despesa a miopia também é grande. Buscando garantir as políticas públicas necessárias à garantia do artigo 3° da CF/1988 diversas políticas são elaboradas e aprovadas pelos parlamentares, mas, em geral, eles não se atentam aos cálculos relativos aos impactos de médio e longo prazos para o orçamento público, tampouco debatem sobre as fontes de recursos necessárias para financiar as novas despesas criadas, provavelmente porque isso envolveria a rediscussão do sistema tributário em vigor.

Um exemplo mais recente da miopia fiscal brasileira se evidenciou na aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95) que estabeleceu, por 20 anos, um teto de gastos do governo federal, afetando diversas políticas públicas como saúde e educação, entre outras. Por possuir um desenho excessivamente rígido, a EC 95 não estabeleceu regras (ou possibilidades de revisão, a despeito da previsão de alteração dos limites após 10 anos) para a gestão fiscal em momentos críticos nos quais políticas contracíclicas são necessárias. Como nos evidencia o momento atual, onde uma pandemia colocou qualquer plano fiscal em xeque, a EC 95 também não estabeleceu nenhuma premissa econômica, ou seja, que tipo de cenário estamos prevendo. Os efeitos dessa EC começaram a ser sentidos no ano de 2020, justamente o ano em que acontece a pandemia, colocando os governos (já no curto prazo) numa enorme saia justa.

Além disso, a EC/95 trata basicamente da despesa, sendo a receita orçamentária tratada de forma marginal, fazendo com que a busca pelo equilíbrio fiscal almejado na EC se torne muito mais difícil de ser alcançado. Por consequência, a EC 95 converte o orçamento público brasileiro, mal comparando, a um orçamento incremental, desprovido de qualquer avaliação dos programas que o compõe.

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Outra marca da miopia, é que, embora deva persistir por um período de 20 anos, a EC 95 não traz nenhuma análise aprofundada de como receitas e despesas se comportarão no decorrer desses anos. Dessa forma, de um lado, não há previsão do que se fará no caso de superávits serem gerados em exercícios futuros e, de outro, não se discutiu quais despesas poderiam ser incrementadas para que, no longo prazo, pudessem contribuir direta ou indiretamente para geração de fluxos futuros de receitas para o Estado.

A EC 95 deixa antever apenas, ainda que de forma subjacente, que os superávits gerados serão dragados quase que exclusivamente para a redução da dívida e para o pagamento de juros. Nenhum incentivo de reformulação orçamentária com perspectiva de longo prazo é levado em consideração. Dessa forma, por exemplo, gastos tributários, que somaram R$ 348,3 bilhões, apenas em 2019, e com previsão de R$ 330 bilhões para 2020v passam ao largo de qualquer análise mais acurada.

Para compreender as causas dessa miopia, é preciso recuar no tempo a fim de demonstrar que ela não apareceu do dia para a noite, mas foi construída ao longo dos anos pela inversão, ao menos no setor público, da ordem entre planejamento e gestão, determinada a partir de uma lógica de financeirização da economia. Esse processo histórico tem início no final da década de 1970, com o declínio do estado de bem-estar social e com a ascensão do neoliberalismo cuja expressão mais evidente foi o modelo de Nova Gestão Pública. No Brasil, esse movimento não se deu de maneira diferente, uma vez que havia um movimento global marcado pelo aumento da importância do endividamento público como forma de financiamento dos Estados e como indicador de estabilidade macroeconômica. Para se ter uma ideia, o aumento da dívida pública em relação ao PIB nos países do G-20[iii] entre a década de 1970 e 1990 aumentou 121,44%.

Esse aumento generalizado das dívidas públicas foi acompanhado pelo desenvolvimento e circulação internacional daquilo que o Banco Mundial chamou de "Melhores Práticas Internacionais" de gerenciamento da dívida. Tal modelo produziu efeitos sobre a configuração institucional dos instrumentos de planejamento orçamentário dos países, sobretudo os de economia periférica. Foi na esteira desse processo que ocorreu, na passagem dos anos 1980 para 1990, a chamada primeira onda do processo internacional de profissionalização da administração da dívida pública, liderados por países como Nova Zelândia, Bélgica, Irlanda, Dinamarca e Suécia, entre outros[iv].

Na década de 1990, ocorreu uma segunda onda de reformas institucionais que envolveu os chamados países emergentes e contou com o papel de organismos multilaterais como o FMI e o BIRD[v]. Esses organismos, atuaram fortemente ante a vulnerabilidade externa pela qual passaram tais países, evidenciada pelas crises do México em 1994, Ásia em 1997, Rússia em 1998 e Brasil em 1999. A crise de 2008, no entanto, começou a colocar no debate os limites da filosofia neoliberal e a sua incapacidade de promover o desenvolvimento com equidade.

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O resultado desse processo foi a institucionalização de um modelo fiscal míope que acabou produzindo um debate raso e desqualificado sobre as escolhas que, anualmente, o Executivo e o Legislativo fazem ao alocar os recursos às diversas políticas públicas. Maneira geral, pensa-se no hoje sem nenhuma ou quase nenhuma avaliação sobre as consequências futuras, bem como sem levar em conta a capacidade orçamentária (receitas) do Estado, mesmo considerando as possibilidades de endividamento ou de emissão de moeda.

Do ponto de vista orçamentário, a miopia é observada já no processo de elaboração, quando se alocam recursos considerando-se primordialmente o montante de despesas julgadas necessárias, não se levando em conta as fontes de receita que deveriam limitar o tamanho das despesas, tampouco a ampliação das fontes necessárias para financiar as respectivas despesas e, consequentemente, o desenvolvimento econômico e social do país. Essa prática faz com que a maioria dos orçamentos nacionais já nasçam deficitários e isso fica evidenciado nos repetidos decretos de contingenciamento de despesas publicados já nos primeiros meses do ano. Essa forma de proceder orçamentariamente não resolve os problemas do ano orçamentário corrente e compromete demasiadamente os resultados orçamentários futuros, afetando não apenas futuros governos, mas as gerações futuras.

O que se quer pontuar é que os processos de mudança pelas quais o Brasil vem passando levaram a uma financeirização que acabou tendo impacto nos modelos de planejamento, visto que a excessiva necessidade de se controlar a dívida acabou deixando os modelos de planejamento em segundo plano. E a visão míope, conforme se observou, é marca caraterística desse ambiente; não apenas da trajetória histórica, mas hodiernamente quando se começa a discutir a substituição do Plano Plurianual (PPA) por um orçamento elaborado para viger por quatro anos.

No momento atual, com a pandemia de COVID-19 e a iminente proposta de reforma tributária, precisamos refletir se o Brasil continuará a se pautar pela visão míope, de curto prazo, que tem sido a baliza ao longo dos anos de formuladores e aprovadores dos orçamentos públicos em seus diversos níveis ou se se buscará um reposicionamento. Acreditamos que sem uma visão mais ampla, isto é, sem levar em consideração uma perspectiva de análise de longo prazo na obtenção e na alocação de recursos públicos, será cada vez mais difícil lidar com as incertezas futuras e, até mesmo, construir possibilidades mais coerentes e viáveis para, ao menos, se tentar viabilizar o atingimento dos objetivos fundamentais traçados pela Carta Constitucional. Instrumentos institucionais existem, basta apenas que se tenha vontade política para se fazer uso deles.

Assim, introduzir visão de longo prazo na condução da política fiscal converte-se na principal orientação para que se possa almejar, como salientou Wessel, uma base fiscal sólida, essencial para uma economia saudável, com rendimentos, oportunidades e mobilidade crescentes.

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[i] Galle, B. D. (2012). Myopia, Fiscal Federalism, and Unemployment Insurance: Time to Reform UI Financing. Boston College Law School Faculty Papers.

[ii] Wessel, D. (2016). What is the long term and why should we worry about it? In: Bipartisan Policy Center. Fixing fiscal myopia: why and how we should emphasize the long term in Federal Budgeting.

[iii] Dados obtidos no Fundo Monetário Internacional. Disponível em https://www.imf.org/external/datamapper/DEBT1@DEBT/OEMDC/ADVEC/WEOWORLD

[iv] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2010). Estado, instituições e democracia: desenvolvimento. Brasília: Ipea. v.3, Livro 9, (698 p.).

[v] EMI n. 00083/2016 MF MPDG. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/EMI/2016/83.htm

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v Ministério da Economia (2020). 4º Orçamento de Subsídios da União: Relatório de Benefícios Tributários, Fiscais e Creditícios de 2013 a 2019. Disponível em https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletim-subsidios/arquivos/2020/osu-2020-final-em-09-07-2020-18h25.pdf; e Gastos Tributários: projeções PLOA 2020. Disponível em http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/renuncia-fiscal/previsoes-ploa

 

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