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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

A Covid-19 expõe o limite do sistema de saneamento no Brasil: repercussões sociojurídicas

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Por Redação
Atualização:

Prof. Dr. José irivaldo, Professor Adjunto da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG, Professor do Mestrado em Gestão de Recursos Hídricos - UFCG/UNESP, Pesquisador Produtividade CNPq.

 

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O problema que possuímos com o saneamento, no que tange ao acesso à água e ao esgoto tratado, não é novidade, entretanto está mais exposta ainda por mais uma doença, agora em grau de pandemia, cujas repercussões na saúde humana ainda são incertas, a COVID19. Já convivemos com diversas doenças que são veiculadas por meio da água e do esgoto não tratado[1] a exemplo de doenças gastrointestinais infecciosas, febre amarela, dengue, leptospirose, malária e esquistossomose.

Entretanto, o fato novo dessa pandemia de COVID19 está na sua potencialidade de transmissão e, também, na possibilidade concreta dessa ocorrer por meio de resíduos contaminados, seja por "lixões" irregulares, pelo esgoto e água sem tratamento. Dessa forma, um detalhe chama a nossa atenção como pesquisadores e juristas: será que temos mais uma doença de veiculação hídrica que pode gerar a responsabilidade dos gestores públicos por sua inércia na não execução de políticas públicas básicas? É interessante citar a Nota Técnica[2] divulgada semana passada sobre a questão do COVID  e sua potencial relação com o saneamento:

  • Primeiro, que uma boa estrate?gia para detecc?a?o da presenc?a de uma doenc?a ou infecc?a?o viral na populac?a?o, inclusive na parcela que na?o manifesta a doenc?a - portadores assintoma?ticos, consiste no monitoramento do esgoto para a presenc?a do agente infeccioso;
  • A segunda implicac?a?o e? que os profissionais que atuam na a?rea de esgotamento sanita?rio, notadamente os diretamente envolvidos com a operac?a?o e manutenc?a?o das redes coletoras e ETEs, bem como os pesquisadores que te?m contato ou manuseiam amostras de esgoto, devem reforc?ar os cuidados e na?o abrir ma?o da utilizac?a?o de equipamentos de protec?a?o individual (EPI), a fim de evitar a ingesta?o inadvertida de esgoto, ainda que por meio da inalac?a?o de aerosso?is, evitando assim a contaminac?a?o. Ressalta-se que as medidas de protec?a?o e seguranc?a ocupacional, repassadas e adotadas como padra?o para esses profissionais e pesquisadores, sa?o eficazes na protec?a?o contra o novo coronavi?rus e outros pato?genos presentes no esgoto. Ale?m disso, como qualquer outra pessoa, esses profissionais e pesquisadores devem adotar e intensificar as medidas de higiene recomendadas, como lavar as ma?os com a?gua e saba?o ou higieniza?-las com a?lcool em gel, na?o tocar os olhos, face e boca antes de lavar as ma?os;
  • Outra implicac?a?o importante, considerando a situac?a?o sanita?ria do Brasil, em que apenas 46% do esgoto gerado no pai?s sa?o tratados (segundo o Sistema Nacional de Informac?o?es sobre Saneamento - SNIS 2018), e? que nos meses em que durar a pandemia poderemos estar despejando em nossos rios uma enorme carga viral. Como conseque?ncia, podera? ocorrer o aumento da disseminac?a?o do vi?rus SARS-CoV-2 no ambiente e a infecc?a?o da parcela mais vulnera?vel da populac?a?o, aquela que na?o tem acesso a uma adequada infraestrutura de saneamento ba?sico.

Ainda outras informações dão pista da possibilidade de potencialização da transmissibilidade do COVID19 por meio do esgoto não tratado ou pela água não tratada, como o caso da evacuação do prédio em Hong Kong[3], ou mesmo especialistas pelo mundo já dão conta da possibilidade da doença ser espalha por meio da tubulação de esgotos em virtude do vírus está nas fezes[4]. Além dessas, pesquisas em Cingapura e Holanda já dão conta que há uma relação entre transmissão do COVID e o esgoto não tratado.

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Trabalhos recentes, publicados na revista cienti?fica Lancet Gastroenterol Hepatol (vol. 5 abril/2020), mostraram que pacientes com a COVID-19 apresentaram em suas fezes o RNA viral. Em cerca de 50% dos pacientes investigados no estudo, a detecc?a?o do RNA do SARS-CoV-2 nas fezes aconteceu por cerca de 11 dias apo?s as amostras do trato respirato?rio dos pacientes terem sido negativas, indicando a replicac?a?o ativa do vi?rus no trato gastrointestinal e que a transmissa?o via feco-oral poderia ocorrer mesmo apo?s o trato respirato?rio ja? estar livre do vi?rus[5].

Essas informações provocam alguns questionamentos que possuem repercussões jurídicas, principalmente uma questão crucial: se a nossa Política Nacional de Recursos Hídricos e a Política Nacional de Saneamento Básico são suficientes e eficazes? Os números que atestam a existência de uma crise hídrico-sanitária são patentes já estão exaustivamente expostos (SILVA, 2020), entretanto é importante lembrar alguns problemas relacionados ao saneamento e a uma crise estrutural nas cidades e no campo brasileiro:

  • 13 milhões de pessoas em áreas irregulares, segundo dados do IBGE (2016);
  • 80% das águas residuais no mundo são lançadas nos mananciais sem tratamento (UNESCO, 2019);
  • Só o Brasil interna anualmente cerca de 300 mil pessoas por doenças relacionadas à falta de saneamento[6];
  • A falta de implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS);
  • O abastecimento difuso em comunidades remotas praticamente não existe, como no caso das populações do campo (IBGE, 2016);
  • O saneamento rural está muito abaixo do mínimo necessário se comparado com o saneamento urbano (IBGE, 2016);
  • A população branca tem muito mais acesso ao saneamento do que a população negra ou parda (IBGE, 2016);
  • A dificuldade de acesso à água pelas populações do semiárido é enorme (INSA, 2014);
  • O acesso à água pela população de rua inexiste.

Essas questões somadas a uma pandemia das proporções do COVID19 vem reforçar a necessidade de termos um novo marco legal nacional em face da proteção das águas, unificado em apenas um estatuto legal, sem fragmentações, pois cada vez mais vemos que essas questões estão interligadas, seja saúde, seja desenvolvimento, seja água, seja meio ambiente. Precisamos interligar essas políticas no plano legal e no plano mais pragmático nas formulações e implementações na gestão pública diária.

Um passo importante seria a mudança da percepção de Segurança Hídrica como sendo algo ligado apenas à escassez de água o que verificamos ao longo de nossas pesquisas, sendo a necessidade de ampliarmos e mudar de paradigma essencial, realizando uma transposição para uma Segurança Hídrica Ecológica (SHE), o que, inevitavelmente geraria uma Política Nacional de Gestão Hídrica Ecológica.

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Assim, gostaríamos de compartilhar um conceito de Segurança Hídrica Ecológica, que elaboramos em nossa tese recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Paraíba, sob orientação do Prof. Dr. Talden Farias e coorientação da Profa. Belinda Cunha, cujo teor é muito pertinente para o momento atual, afirmando o seguinte: essa SHE é a a disponibilização de água minimamente suficiente para toda forma de vida e que tenha padrão de qualidade compatível com seu uso, sendo envidados esforços no sentido de preservar as bacias hidrográficas, reconhecendo e quantificando os serviços ecossistêmicos, levando-se em consideração a resiliência dos aglomerados urbanos, a preservação de todos os elementos que tem relação direta com o ciclo da água e, portanto, com a produção de água, cuidar para a diminuição da impermeabilização do solo, bem como adotando tecnologias para o uso racional de água na agricultura, sem a aplicação de agrotóxicos, e em todos os processos industriais, adotando equidade e a justiça ambiental como pilares e aplicando o reuso de modo que se possa manter o máximo de tempo possível a água no ciclo natural e no ciclo urbano. (SILVA, 2020, p. 364-365). Essas ações em forma de conceito tem implicações diretas na saúde.

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Portanto, algumas questões pontuais precisam ser observadas não só nessa época de COVID19, mas também para o período pós pandemia, principalmente em relação às falhas de planejamento que possuíamos com tantos planos discutidos e executados separadamente e que deveriam ser, na prática, interligados, pois na verdade na essência já o são, quais sejam:

1) Equidade; 2) Saúde/Qualidade; 3) Quantidade; 4) Resiliência/Desastres; 5) Serviços Ecossistêmicos; 6) Risco de Poluição Difusa; 7) Drenagem/Impermeabilização; 8) Uso e Ocupação do Solo; 9) Mapeamento; 10)Modelo de Governança; 11)Participação.

Esses elementos devem pautar as discussões relacionadas ao repensar do próprio entendimento jurídico do que vem a ser saneamento, ampliando e abarcando outros setores da vida humana, bem como repensando a responsabilidade dos gestores frente à inexecução do que foi proposto nos planos e cujo o resultado pode ser negativo para toda a sociedade. Inclusive, é interessante recolocar a discussão da execução real de uma região metropolitana que trata de questões comuns como saneamento e do instrumento jurídico dos consórcios para a solução desses problemas comuns e que coletivamente seria, em tese, mais fácil resolver.

 

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Referências

 

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Si?ntese de Indicadores Sociais: Uma ana?lise das condic?o?es de vida da populac?a?o brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2016.

INSTITUTO NACIONAL DO SEMIÁRIDO - INSA. Esgotamento Sanitário: panorama para o semiárido brasileiro. Campina Grande: INSA, 2014.

SILVA, J. I. A. O. Segurança Hídrica Ecológica: fundamentos para um conceito jurídico. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas. Universidade Federal da Paraíba. 2020.

[1] http://www.tratabrasil.org.br/blog/2019/05/21/internacoes-de-doencas-por-veiculacao-hidrica-no-brasil/

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[2] Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) ETEs Sustentáveis - http://etes-sustentaveis.org/wp-content/uploads/2020/03/COVID-19-e-o-Saneamento-no-Brasil.pdf

[3] https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/13/coronavirus-predio-em-hong-kong-e-evacuado-autoridades-suspeitam-de-transmissao-por-encanamentos.ghtml

[4] http://portuguese.xinhuanet.com/2020-02/19/c_138797843.htm

[5] https://www.thelancet.com/pdfs/journals/langas/PIIS2468-1253(20)30048-0.pdf. e outras pesquisa tampem atesta isso https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S2468-1253%2820%2930083-2

[6] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/03/27/pula-no-esgoto-e-nada-acontece-brasil-tem-mais-de-300-mil-internacoes-por-ano-por-doencas-causadas-por-falta-de-saneamento.htm

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